“Em todo o livro há uma viagem”
1. Teoria da Viagem (Michel Onfray, 2007)*
“A viagem começa pela biblioteca”. Esta frase, tão inspiradora (talvez a cair em desuso, digo eu, mas que se pretende regenerar), está escrita no primeiro livro escolhido por mim para o começo de uma série de histórias sobre as viagens contidas nas minhas prateleiras de livros, uns maís óbvios, outros inusitados. Pretende-se provar que, nos livros, qualquer que seja o seu género literário, há sempre uma ou mais viagens, direta ou indiretamente associadas à arte de viajar.
Michel Onfray é um filósofo francês que, neste livro, nos oferece uma poética na disciplina da geografia. Esta poética guia-nos no entendimento teórico da viagem, bem como do turismo, mas que o autor não valoriza, neste caso.
A viagem começa diante de livros (e de páginas da Internet, digo eu), para se alimentar de materiais de divulgação sobre o destino escolhido, diante de um atlas, de guias, da literatura e da poesia, o que nos dá a oportunidade de celebrar culturalmente a viagem antes da experiência.
Depois, quando damos a volta à chave da nossa casa, começamos a ser viajantes, ainda situados num espaço intermédio, entre o lugar deixado para trás e o lugar desejado.
O autor mostra-nos que o desejo de sair é desde logo absorvido no ventre da mãe e que se torna mais tarde em emoção, imaginação, reputação, promessa de prazer, que induz a escolha perante a multiplicidade de destinos. Só então a razão analisa a viabilidade da viagem e toma a decisão.
Viajar é o oposto do laborioso horário quotidiano da civilização em favor do lazer inventivo e alegre, é um tempo singular de momentos festivos almejados, “o durante”, onde estão todas as emoções, a alegria, o espanto, o entusiasmo, a surpresa, o questionamento e a diferença que caracteriza cada destino.
E aí quase se esquecem os livros.
A última fase é o regresso a casa, ao sedentarismo, quando passamos a desafiar as memórias, no tempo em que retomamos os cadernos, as fotos, as notas, os desenhos, para não esquecer e para se saber que se passou por ali.
Neste texto, encontramos o fruto de um desejo de decifrar cientificamente o espaço, logo, um instrumento de uma leitura poética de paisagens, onde a geografia é o mar e a história é a espuma. Este é um tópico para a relação entre geografia e poesia. Fixemo-nos no subtítulo da obra, “uma poética da geografia”. A verdade da poesia em confronto com a geografia está, desde logo, assinalada nesses passos iniciais de uma viagem. Nesse começo está a poesia, antes da partida e no desejo de viajar. O resto é puramente geografia.
Este não um livro fácil de ler, mas é dos mais intensos sobre a arte de viajar. O pensamento de Onfray é veloz, ele detesta a lentidão, até no ato de viajar. E fica no ar esta pergunta: Onde é que os turistas e os viajantes se posicionam face à oposição concetual entre eles? A distinção entre viajante e turista é uma das ideias mais amplamente aceites neste livro, dando o autor privilégio ao viajante.
Porém, pergunto: Será o viajante que se torna turista ou o turista que passa a ser viajante?
Este pensamento é o produto historicamente datado de uma mudança de perspetiva: na década de 1920, o viajante deu lugar ao turista, símbolo positivo da modernidade. A hierarquia mudou através dos tempos, mas sem significado, o que nos permite desconstruir a distinção. Presentemente, cada um de nós é, de acordo com as circunstâncias, turista ou viajante.
Onfray assume a sua condição de viajante, ou seja, um visionário autoproclamado, face a um turista. Os turistas são os outros, refere.
Este ensaio é fascinante, cada um pode encontrar aí as suas experiências e continuar a viajar, porque como bem diz Michel Onfray: Toda viagem é iniciática – da mesma forma, uma iniciação não faz parar a viagem. Antes, durante e depois, verdades essenciais são descobertas, sequencialmente, que estruturam a identidade. E é certo que ponderar uma nova partida pressupõe uma inovação e não uma repetição. É o que farei em relação ao próximo livro.
Por Jorge Mangorrinha, Pós-Doutorado e Professor em Turismo
*O autor escreve todos os meses sobre um livro à escolha
** Próxima obra: A Volta ao Mundo em 80 Dias