Por Jorge Mangorrinha
Um império de afetos
Em plena Segunda Guerra Mundial, Lisboa viu abertas as portas de um hotel glamoroso no número 17 da Rua Rodrigues Sampaio. Desde o início que o Hotel do Império contou com a presença de diplomatas, políticos, espiões, empresários, artistas e intelectuais. Nele foram realizadas festas e ceias servidas nos terraços. Projetado pelo arquiteto modernista Cassiano Branco e com a posterior participação de técnicos do Secretariado Nacional de Informação e Turismo (SNI) em pleno rescaldo da Exposição do Mundo Português (1940), este hotel foi inaugurado a 13 de outubro de 1944. Em meados dos anos 70 mudou de gerência e nome, e mais recentemente foram-lhe recuperados atributos de origem. Com oito décadas, o atual Hotel Britania Art Deco faz parte dos Hotéis Heritage Lisboa, com os hotéis As Janelas Verdes, Heritage Avenida Liberdade, Lisboa Plaza e Solar do Castelo.
A notável porta da entrada, com desenho curvilíneo de arco perfeito, abre-se para que os nossos olhos se prendam no encontro entre o modernismo português pela opulência do mármore e pelo brilho dos bronzes e cromados e dos lustres de vidro opalino na entrada e o tradicionalismo do bar pela decoração historicista de escudos heráldicos dos antigos territórios do Império Português e de figuras do “Adamastor” e dos “Anjos Protetores de Portugal” que sustentam o escudo do rei D. Manuel I. Esta parte do hotel foi concebida por técnicos do SNI, depois de Cassiano Branco deixar o projeto. Os desenhos deste arquiteto estão expostos na parede da receção e em cada um dos pisos. Na época, ele acabara de projetar o Coliseu do Porto e criava fachadas modernistas para Lisboa e o Grande Hotel do Luso em traço tradicionalista.
Retemos as palavras escritas no “Diário de Lisboa” sobre o dia inicial deste hotel: “Foi ontem inaugurado, conforme noticiámos, um novo hotel, com tôdas as condições de higiene, comodidade, modernismo e bom gosto. À noite realizou-se um jantar a que assistiram cêrca de 100 pessoas, em honra de elementos de destaque nas actividades de turismo, jornalismo e outras entidades, tendo presidido o sr. Fausto de Figueiredo.” A notícia continua referindo o gerente Ribeiro de Almeida, que prestou homenagem aos seus colaboradores e à imprensa.
O carácter inovador do Hotel do Império passava pela estrutura do edifício de cinco andares, em betão armado, com paredes duplas e cobertura em terraço, com salão restaurante e “dancing”, e pelo sistema de alojamento que oferecia pequenos apartamentos constituídos por antecâmara, saleta com sofás, secretária e máquina de escrever, casa de banho privativa e quarto com telefone ligado diretamente e telefonia, que era um modelo inédito na época em Portugal.
Escrevo estas palavras no bar que tem um relógio em estilo Art Déco. Marca as horas rigorosamente certas. No mesmo espaço, uma fotografia de Carmen Sevilla, capturada por Luís Mendes, sentada num banco do balcão, marca a passagem desta artista pelo hotel, em 1954, aquando da estreia, no Cinema Odéon, do filme “Violetas Imperiais”. Foi neste hotel que ela deu a primeira entrevista à revista “Plateia” (1 de fevereiro). O quarto 44 é-lhe dedicado.
Neste bar, sobre o chão enxaquetado com madeira exótica, há mesas de tampo em pedra, cadeiras almofadadas e sofás, com destaque para um destes com notável padrão Art Déco. No ar soa a música que remonta às décadas da origem do hotel. Convém dizer que da parte da manhã a música ambiente é instrumental e passa a ter canto à tarde e à noite. Uma frase pintada é inspiradora: “E, se mais mundo houvera, lá chegára” (“Os Lusíadas”).
O hotel guarda estas e outras memórias. A antiga barbearia ainda tem a cadeira “Pessoa”. Nas vitrines estão alguns objetos que se encontravam no antigo escritório e peças do serviço de porcelana Vista Alegre com o símbolo do Hotel do Império. Nas estantes da sala dos pequenos-almoços, cujo lanternim coa a luz do dia, há muitos livros, de que se destacam aqueles sobre Lisboa e outros glorificando o estilo Art Déco. É neste ambiente que se delicia o chá das cinco até às nove da noite, num período notavelmente extenso, tal como é o horário destinado aos pequenos-almoços até ao meio-dia.
Todos os quartos estão virados para uma rua tranquila, mas muito perto da vibrante Avenida da Liberdade. Eles parecem pequenos apartamentos. O mobiliário original foi feito propositadamente pela empresa portuense Móveis Costa. O chão é de cortiça da Fábrica Mundet, do Seixal, repetindo os motivos geométricos que se encontram, em mármore, na entrada, nos corredores e nas casas de banho. Estas são providas de produtos Moulton Brown para banho e chuveiro.
Na Junior Suite n.º 56 que me coube, um cartão dá as boas-vindas com a assinatura de Diogo Laranjo, diretor geral dos Hotéis Heritage. Um outro cartão convida-me a tomar chá, café, ginjinha ou um Vinho do Porto, ali ou na biblioteca, “sempre que desejar”. Um piso acima, está a Suíte dos Escritores, onde antes era um extenso terraço e agora o espaço de homenagem de quem se dedicou à escrita e frequentou ou se hospedou neste hotel. O terraço foi transformado num piso recuado de quartos, cujo projeto é da autoria do ateliê Promontório Arquitectos, mantendo a imagética geral do hotel, com contemporaneidade. Nessa suíte, recorda-se “A Tertúlia do Britania”, quando o bar era o ponto de encontro de muitos escritores e jornalistas. Estantes com livros, fotografias, cartas e postais, além de champanhe francês para consumo, recriam neste quarto um pouco do ambiente que se vivia no hotel e na casa (5.º andar do n.º 52) onde a “poeta” Natália Correia promovia grandes tertúlias culturais e de resistência ao regime de Salazar, tendo o apoio do restaurante do hotel, que fornecia as refeições e os bifes de madrugada, num vaivém constante de bandejas. O hotel era da propriedade do seu marido Alfredo Machado, com quem casara em 1950, e considerado uma extensão da sua casa. Os cozinheiros teriam de estar atentos à chamada a qualquer hora. Um dos primeiros foi o famoso “chef” Silva, que começou como aspirante de cozinha no Império antes de integrar o Hotel Aviz. A cozinha do Império foi uma escola para muitos outros nomes da gastronomia da capital. Durante alguns meses, no quarto 13, Natália Correia escreveu “O Encoberto” (a peça de teatro proibida pelos censores), apesar de residir perto nessa rua. Jogava-se numa roleta clandestina montada no último andar do hotel.
A perpetuar a estada de Vinícius de Moraes foi-lhe dedicado o quarto 24. O poeta brasileiro participou no Zip-Zip e fez espetáculos no ciclo “Boa Música do Brasil” do Teatro Villaret de Raul Solnado. Ele esteve no hotel aquando do terramoto da madrugada de 28 de fevereiro de 1969. Nessa noite o poeta terá escrito o poema “Lisboa tem terremoto”, onde enaltece a cidade e algumas das figuras que conheceu. E inicia assim: “– Lisboa tem terremoto / Diz o mote e com razão / – É certo, tem terremoto / Porém, em compensação / Tem muitas cores no céu / Muitos amores no chão”.
Até 1973 os concessionários foram Constantino Araújo e Paredes Alves. O hotel fechou para obras nesse ano, reabrindo em 28 de janeiro de 1976 como Hotel Britania e sob gerência de Luís Alves de Sousa e Rui Paiva. O sucesso do hotel prendeu-se, também, pelo facto de não ter tido a incorporação de portugueses vindos do Ultramar após as independências dos respetivos territórios.
Nos anos 90 recebeu melhoramentos, incluindo a construção do portão de entrada à imagem do desenho original de Cassiano Branco e ainda o restauro de pavimentos, estuques e frescos da receção e do bar e a abertura da comunicação direta entre estes dois espaços. Ao reconhecer o valor do edifício enquanto objeto arquitetónico de qualidade, a Direção Geral do Turismo atribuiu-lhe, em março de 1995, a classificação de Imóvel de Relevante Valor Arquitetónico e, em 1998, a classificação de Relevante Interesse Histórico-Cultural. A Câmara Municipal de Lisboa atribuiu-lhe, em 1999, o Prémio Municipal Eugénio dos Santos.
Com base num conto de Richard Zimler, jornalista e escritor norte-americano naturalizado português e cliente habitual do hotel, filmaram-se ali algumas cenas da curta-metragem “Espelho Lento” (2009), realizada por Solveig Nordlund.
Em 2010 o jornal britânico “The Guardian” considerou este hotel como um dos quatro melhores em estilo Art Déco da Europa e em 2019 o “Telegraph” incluiu-o na lista “The world´s most amazing Art Deco hotels”. O hotel foi premiado com o Historic Art of Hospitality Award 2023, atribuído pela Historic Hotels of Europe, organização que visa destacar propriedades que incorporam a combinação perfeita entre a importância histórica, um excelente serviço e uma cultura única.
Este hotel está situado entre dois mundos lisboetas, entre as lojas de grandes marcas na cosmopolita Avenida da Liberdade e o comércio tradicional e multicultural da Lisboa Antiga da Rua das Portas de Santo Antão à Rua de São José. Esta realidade diversifica as opções para quem queira assomar-se à vizinhança do hotel.
O acolhimento recebido nesta estada é próprio das práticas mais nobres da hospitalidade. A prestimosa atenção de Luís Alves de Sousa, recebendo-me para uma conversa sobre algumas histórias direta ou indiretamente relacionadas com o hotel, e de seu filho Miguel Alves de Sousa, muito presente, é uma das marcas de toda a hierarquia de colaboradores sempre prestáveis. O coordenador da receção, Vítor Pacheco, e a rececionista Larissa Leonardi foram os primeiros rostos que me deram as boas-vindas. André Pereira, bagageiro e barman, circula nos espaços sociais com uma notável simpatia e delicadeza de porte e trato, a que se junta a sua fluidez em diferentes idiomas, até porque é nesta área de conhecimentos que tem a sua formação universitária.
No Hotel Britania Art Deco respira-se um ambiente familiar de serenidade e bem-estar, próprio de um boutique hotel, muito semelhante ao conceito de hotel de charme ou hotel exclusivo, mas com uma ênfase maior nos elementos de arte, individualidade e interatividade. Esta interatividade é espontânea e dela surge um elemento contextual que aumenta a perceção positiva do hóspede, transformando a estada em experiência.
*Jorge Mangorrinha é pós-doutorado em Turismo, doutorado em Urbanismo, mestre em História Regional e Local (especialização em Património) e licenciado em Arquitetura. Autor multifacetado recebeu o Prémio José de Figueiredo 2010 da Academia Nacional de Belas-Artes. Com experiência no planeamento turístico, em Portugal e no estrangeiro, exerceu, também, como gestor técnico na Parque Expo’98 e como presidente da Comissão Nacional do Centenário do Turismo em Portugal (1911-2011). Colabora com o TNews, tendo sido o autor da rubrica “A Biblioteca de Jorge Mangorrinha”, a que se segue “Há História no Hotel” durante 12 crónicas.