Pelos espaços que ressoam
Por Jorge Mangorrinha
No final desta visita surge o meu mais difícil dilema. A notável experiência deixa-me sem palavras, que apenas se soltam por dever de reconhecimento. Tudo é digno de ser contado, com o mesmo cuidado da hospitalidade recebida. Notável é o tratamento estético dos espaços deste antigo mosteiro transformado num dos hotéis da cadeia The Lince Hotels, pertencente ao empresário Domingos Correia. Há séculos que esta grande casa das antigas Clarissas nasceu de uma história de amor e de um sonho, construída num monte sobranceiro ao rio Ave. O amor está presente todos os dias na vida deste hotel, ressoa em cada gesto, em cada sorriso, em cada surpresa, sendo uma dádiva de pertença em relação a cada um de nós. Há uma linguagem gestual secreta e uma escadaria misteriosa, pela qual, à época das monjas, entravam as mercadorias, mas também os padres.
“A partir deste monte derivam todos os vila-condenses”, disse Lino Ramos, técnico de turismo do município que propiciou uma visita guiada ao centro histórico, iniciando e terminando o percurso nesta unidade hoteleira de 5 estrelas que se quer posicionar numa ligação estreita com a comunidade. Helena Gonçalves, diretora comercial e de marketing, foi quem organizou a visita e estabeleceu um programa personalizado, em articulação com Rita Fonseca, assessora de imprensa. Helena Gonçalves permaneceu próxima durante toda a estada, com uma hospitalidade absolutamente excecional, desde logo no primeiro momento presenteado no Abadessa Concept Bar, rodeados de notáveis publicações em grande formato das editoras Assouline e Taschen. Sempre com um olhar luminoso e sorriso simpático, a responsável pelas relações comerciais e promocionais irradia disponibilidade e competência no âmbito das suas funções que, em cada dia, parece que não têm horas para finalizar.
Estamos num edifício cuja história remonta ao século XIV. Anteriormente, o rei D. Sancho I tinha na sua corte muitas damas. A favorita dele era D. Maria Pais Ribeira, a Ribeirinha, de cabelos arruivados e sensual, que deixou descendência. Ela recebeu terras por testamento régio, ficando Senhora de Vila do Conde. A sua tetraneta Teresa Martins de Meneses casaria com Afonso Sancho, filho bastardo do rei D. Dinis. Reza a lenda que, após o regresso de uma peregrinação a Santiago de Compostela, ambos sonharam durante três noites consecutivas com uma escada que subia da terra para o céu envolta em fumo odorífero e que seria precursora de uma casa monástica religiosa. Nasce a ideia de se fazer um mosteiro dedicado a Santa Clara. O rei D. Dinis assina, a 7 de maio de 1318, a carta a autorizar a construção, talvez como gesto de agravo à sua própria mulher, a rainha Santa Isabel, devota de Santa Clara, mas que não via com bons olhos a tentativa de ascensão ao trono de Afonso Sancho em detrimento de um filho seu.
Na segunda metade do século XVIII foi erigido o mosteiro moderno, que deu melhores condições às monjas e correspondeu à forma atual do edifício. O fim das ordens religiosas (1834) abalou o seu funcionamento até à morte da última abadessa (1893). Já no início do século XX a posse do edifício foi transferida para o Ministério da Justiça, que o transformou na Casa de Detenção e Correção do Porto para jovens do sexo masculino. Do antigo mosteiro, que permanecia inacabado, apenas se mantiveram as fachadas e o refeitório, tendo o resto sido reconstruído para a sua ocupação, enquanto estabelecimento tutelar de menores. Duas décadas depois o espaço passou a designar-se Reformatório de Vila do Conde, mantendo em funcionamento a ala Sul, com oficinas refeitório, cozinha, salas de aula e camaratas. Na década de 40, a gestão passou para a Congregação dos Salesianos e assumiu a nova designação de Escola Profissional de Santa Clara, formando jovens para diversos ofícios: sapateiros, alfaiates, marceneiros ou tipógrafos. Até que, em 2018, o Estado faz a concessão da exploração do edifício ao grupo The Lince Hotels, por um período de 50 anos.
Gilberto Rodrigues, diretor do hotel, é afável e atento. Diz que o “sim” é sempre possível, não há lugar ao “não”, quando está em causa servir o cliente, mesmo o mais exigente. Revela, com orgulho, ter conseguido uma equipa coesa que, na sua maioria, iniciou o trabalho meses antes da abertura que aconteceu a 22 de março de 2024, assistindo, portanto, aos últimos desafios da obra, às dores e às alegrias, facto que consolidou um sentimento de pertença entre os diferentes elementos. O diretor honrou-nos com a sua presença ao pequeno-almoço e num dos almoços, aliás, no qual também esteve presente o arquiteto responsável pela excelente reabilitação do mosteiro para unidade hoteleira no âmbito do programa Revive. Carvalho Araújo exerce na cidade de Braga e teve neste projeto mais um grande desafio do seu extenso percurso profissional, partilhando a sua arquitetura com a conceção de mobiliário e acessórios da Vilaça Interiores. Ambos aliaram a capacidade de unir o legado histórico ao conforto e à sofisticação contemporâneos.
Num gesto de grande profissionalismo houve o cuidado de desenhar o fardamento dos colaboradores deste hotel. A conceção é da designer Micaela Oliveira, que desde a Trofa, no seu ateliê entre tecidos e moldes, desenhou esta linha, com personalidade e equilíbrio dinâmico de elegância, que se distingue e já faz parte da internacionalização da marca. Cada peça foi feita sob medida, com base em tecidos leves, resistentes, recicláveis e de fácil manutenção. As cores coadunam-se com a identidade desta cadeia hoteleira e com a história do edifício. Foi tudo meticulosamente pensado, desde a incorporação de botões, que se tornam em acessórios elegantes, à aplicação de bordados, que adicionam um toque de estilo e elegância às peças, tornando cada farda única, nas palavras da sua criadora.
A combinar com o apuro artístico da moda, há outras artes para se desfrutarem em todos espaços deste hotel, tanto a arte do pintor barcelense António Cunha, como nas fotografias de grande formato de diferentes autores. A loja “Além do Tempo” tem na transbordante simpatia de Mara Cruz a sua marca principal, acompanhada de muitos produtos regionais específicos e exclusivos para a venda neste hotel: dos lençóis e pijamas personalizados às rendas de bilros de Vila do Conde. As artes estão em todos os espaços. A gastronomia, também ela uma arte, é um apuro de sensações. Com dois restaurantes à disposição, um de comida tradicional portuguesa, sob coordenação de D. Júlia, e outro “gourmet”, com assinatura do “chef” Vítor Matos, cada refeição é uma jornada de descoberta de sabores, aromas e texturas.
No Restaurante Mosteiro as especialidades culinárias criadas pela conceituada e experiente D. Júlia Oliveira convidam à descoberta da diversidade de Portugal. A servir, a sempre prestável Raquel Martins explica, com particular entusiasmo, a sequência de alimentos à mesa em todas as refeições. Pataniscas, ovos rotos, presunto pata negra, espargos, alheira, cogumelos salteados, filetes de pescada fresca, arroz do mosteiro, costeletas de novilho, cabrito assado no forno e “carpaccio” de ananás foram algumas das iguarias por ocasião desta visita, acompanhadas pelas bebidas servidas por Rodrigo Pinto, prestável a explicar a relação do vinho com a comida em presença. No primeiro dos jantares o repasto foi acompanhado de um Soalheiro Alvarinho Branco 2023, com frescura aromática e sabor intenso, e de um Pardusco Verde de Anselmo Mendes 2022, de cor rubi aberta, com aromas de frutos silvestres e especiarias, fresco com acidez assertiva e final frutado. No almoço do dia seguinte foi servido um vinho branco M.O.B. Moreira, Olazabal & Borges Lote 3 Dão 2022, de cor dourada dada pela maturação e riqueza das uvas e aromas complexos e austeros, seguido de um vinho tinto Quinta Seara d’Ordens Douro 2021, de cor granada, aroma com notas de frutos do bosque macerados e notas tostadas com alguma especiaria e sabor envolvente e de boa complexidade. Estas escolhas permitiram conversas agradáveis sobre a arquitetura e a hotelaria, porque a organização desta visita permitiu simpáticas companhias durante as refeições.
Nos bastidores da cozinha do outro restaurante, o Oculto, o “chef” Vítor Matos, estrelado Michelin, desmistifica o “Fine Dining” e converte os ingredientes mais frescos da estação em verdadeiras obras de arte culinária. Cada prato é uma harmonia de sabores, cuidadosamente elaborado para despertar os sentidos. Oculto é o nome que enaltece a descoberta deste novo piso do hotel, revelado apenas durante a renovação do mosteiro. Nele, estimula-se o lado oculto do que sentimos. Quando uma refeição mexe connosco, somos inteiros a reconhecer-nos e a perceber-nos. A arte gastronómica atua como se, no oculto de cada um de nós, as emoções fossem os mais importantes ingredientes da vida.
Localizada dentro deste restaurante, a exclusiva Wine Cellar, um espaço privado epicurista, tem cerca de 500 referências de vinho cuidadosamente selecionadas. Houve uma sequência de momentos inesquecíveis no jantar de cortesia preparado pelo “chef” Hugo Rocha, que ofereceu a ementa impressa por si assinada, e com a presença de Ricardo Meca, chefe de sala, Carlos Silva, cozinheiro que explicou as entradas, João Batista, escanção que serviu as bebidas, e Bernardo Duarte, empregado de mesa de fino trato. E porque neste piso não há rede de Internet, a atenção foi total na degustação de peixe e marisco, como convém: gamba violeta do Algarve com alho branco, mirim e levístico; lula com alho negro, manteiga de cabra e limão mão de buda; ruivo com ervilha lágrima, percebes e ouriço do mar; pregado com aipo, espargos brancos e morriles; e, de sobremesa, chocolate com caviar, gelado de leite e flor de sal. No vinho, iniciou-se com um Murganheira Millésime Bruto, de cor palha de champanhe, aroma muito frutado, baunilha e frutos vermelhos e sabor a frutos secos marcadamente com persistência notável, seguido de um Arinto dos Açores Terroir Vulcânico da Ilha do Pico 2022, que acompanhou todos os restantes momentos, com aroma apelativo de notas discretas de frutos tropicais frescos, complexadas com ligeiras nuances do balseiro, onde fermentou e estagiou, com agradável enxofre vulcânico.
A linguagem gestual secreta está ilustrada nas ementas, numa aposta original e de relação com as práticas de comunicação das antigas Clarissas. A Ordem de Santa Clara era baseada na obediência, na pobreza e na dedicação a Deus e regia-se pelo cumprimento de um contínuo silêncio. Por isso, usavam-se sinais para comunicar, em particular nas horas das refeições e no cumprimento das horas canónicas. Estes sinais da vida monástica foram compilados pelo padre Mário Martins e transcritos para o funcionamento deste hotel.
E se as mãos são necessárias para este tipo de linguagem e o silêncio faz parte das regras antigas desta grande casa, eles também são essenciais em busca da serenidade para o corpo e a alma.
No Aqueduto Wellness & Spa by Sisley Paris faz-se uma homenagem às antigas monjas. A ambiência deste espaço propicia uma autodescoberta a cada um de nós em contemplação e introspeção. As mãos terapêuticas ajudam ao relaxamento. Nesta experiência, sob a direção de Telma Carvalho, as terapeutas Fátima Ribeiro, Gabriela Oliveira e Vânia Moreira puseram nas suas mãos a essência do bem-estar, em duas sessões, revigorando o corpo, tal como nos confortam os têxteis macios deste hotel criados na Sampedro, de Guimarães, que fazem a diferença. Adjacente ao Spa, o Fitness Center propicia um treino vigoroso ou simplesmente para praticar alongamentos e relaxamento. No exterior, há um jardim onde é possível a prática da meditação e do yoga e, ao fundo, a piscina infinita que se “envolve” com o rio.
Atenta a qualquer pormenor, Joana Ribeiro é a diretora de qualidade do hotel, porque uma prestação de serviços exemplar pode ser o diferencial do negócio e proporcionar uma experiência inesquecível aos hóspedes. A qualidade deve estar presente em todos os serviços, em todos os momentos, com ênfase para os pormenores que podem fazer a diferença. Estes incidem sobre os espaços, os equipamentos e os profissionais (a postura, o comportamento, as atitudes, a disponibilidade e as capacidades pessoais e profissionais para o desempenho da função), comprovadamente desde o “check-in” por parte de João Silva, chefe de receção, ao “check-out” por Mónica Lopes, seguido pelos bagageiros Miguel Silva e Vítor Pereira, que trataram das malas à despedida. Este hotel é um caso exemplar de gestão com padrões elevados de competência. E até do enquadramento urbano se retira benefício para a gestão da unidade e para o desenvolvimento integrado do turismo local.
Neste hotel presta-se homenagem à terra que tem sido uma incubadora de grandes artistas e intelectuais portugueses e com ligação a personagens da história. Foram atribuídos às suas suítes os nomes de figuras notáveis: Berengária e João Baptista às Heritage Suites; D. Teresa de Meneses, D. Afonso Sanches, D. Dinis, Rainha Santa Isabel às Royal Suites; Ruy Belo, Eça de Queiroz, Antero de Quental, Camilo Castelo Branco às Mansard Suites; e José Régio à Grand Mansard Suite. Os quartos distribuem-se por três pisos e, surpreendentemente, o último piso está reservado às mansardas, de características únicas, verdadeiros refúgios sob o céu para desfrute das noites estreladas, saboreando um chá de flores brancas, quando o vento acalma, ciclicamente todos os dias, à entrada das noites de Vila do Conde. Escreveu o poeta: “só entram nos meus versos as coisas de que gosto” (Ruy Belo, 1984). Neste texto entram as memórias do que guardo, batidas ao vento, sentidas no alento. E talvez, assim, eu consiga unir esta estória à história do hotel, bem como plantar a semente oferecida dentro de um lápis de papel, como promessa de escrita e de futuro.
*Jorge Mangorrinha é pós-doutorado em Turismo, doutorado em Urbanismo, mestre em História Regional e Local (especialização em Património) e licenciado em Arquitetura. Autor multifacetado recebeu o Prémio José de Figueiredo 2010 da Academia Nacional de Belas-Artes. Com experiência no planeamento turístico, em Portugal e no estrangeiro, exerceu, também, como gestor técnico na Parque Expo’98 e como presidente da Comissão Nacional do Centenário do Turismo em Portugal (1911-2011). Colabora com o TNews, tendo sido o autor da rubrica “A Biblioteca de Jorge Mangorrinha”, a que se segue “Há História no Hotel” durante 12 crónicas.