Sete ais de espanto
Jorge Mangorrinha
Em plena paisagem rural, numa das encostas da Serra de Sintra e no limite do Parque Natural de Sintra-Cascais, encontramos um edifício palaciano soberbo, a partir do qual se avista um panorama magnífico sobre o oceano e a várzea de Sintra. Mais do que um hotel de 5 estrelas, o Valverde Palácio de Seteais Sintra Hotel é um edifício luxuoso e romântico que, através da sua arquitetura, nos transporta para o requinte e a atmosfera do século XVIII e nos põe em contacto com o imaginário da presença de hóspedes ilustres desde meados do século XX. Inúmeras são as peças de arte que os nossos olhos observam, incluindo mobiliário, iluminação, têxteis, pintura, gravura, porcelana e o singular piano de cauda Steingraeber, delicadamente pintado com cenas pastorais e com acabamento em talha dourada, que ostenta a referência às diferentes medalhas que recebeu, desde a primeira em Paris (1867). Este é o exemplo maior de todo o requinte de uma casa e de um hotel absolutamente mágicos, onde a natureza e o homem se conjugaram numa simbiose perfeita.
Em frente da entrada para o quarto número 4 que me coube em sorte, encontra-se a peça mais antiga do hotel, um contador “Bargueño” do século XVII, de inspiração árabe, que servia de escritório e arquivo para a salvaguarda de documentos importantes. Metaforicamente, também este hotel é um repositório de fontes históricas. Este quarto tem o nome de uma das mais famosas hóspedes, Agatha Christie, bem lembrado no cartão da porta. – “Seja bem vindo ao quarto Agatha Christie que esteve em Seteais em 1968. Agora, é o seu momento para criar a sua história connosco.”
No quarto ainda se respira a presença da escritora inglesa, até porque existem um retrato seu e uma máquina de escrever antiga a simbolizarem o acontecimento. Um cartão de boas-vindas é assinado por Diogo Vasconcelos, “duty manager” do hotel: “É com muito gosto que lhe damos as boas-vindas ao Hotel Valverde Sintra Palácio de Seteais. Terei todo o prazer em contar-lhe todos os segredos deste Palácio único”.
E a história conta-se de seguida.
Daniel Gildemeester, natural de Utrecht, cônsul da Holanda em Portugal, constituiu, em 1783, a Quinta da Alegria, no fim do Campo de Seteais, também conhecido por Campo do Alardo, em terrenos de ginjas e serrados. A sua fortuna adveio do negócio de diamantes do Brasil. Com projeto atribuído ao arquiteto Francisco Leal Garcia, a casa foi inaugurada em 25 de julho de 1787, sendo William Beckford convidado especial entre cerca de 250 presenças de artistas e intelectuais oriundos de diferentes países europeus. Gildemeester contratou um violinista para viver sempre no Palácio e tocar a qualquer hora que fosse necessário, “para que a música não faltasse”, conta Diogo Vasconcelos. Assim começa a história daquele que viria a ser conhecido como Palácio de Seteais. Passando por diferentes proprietários, o edifício sofreu muitas vicissitudes e chegou a ser hipotecado em favor da Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência, em virtude de empréstimos sucessivos, e posteriormente penhorado a favor da Fazenda Nacional.
Em 1945, numa notícia da revista “Panorama” (n.º 12, II série, 1955), dá-se conta de uma reunião do Conselho Municipal de Sintra, em que se lamenta a falta de bons hotéis em Sintra e se alvitra a adaptação de Seteais a um hotel.
O imóvel foi adquirido pelo Estado, em 1946, e, em junho de 1947, foi classificado como “Imóvel de Interesse Público”, incluindo o conjunto de construções e terreiro vedado, jardins, terraços e quinta. Em abril de 1948, Raul Lino iniciou o projeto de adaptação a uma unidade hoteleira. Na época, este arquiteto era superintendente artístico dos Palácios Nacionais e arquiteto-chefe da Repartição de Estudos e Obras de Monumentos do Ministério das Obras Públicas.
De acordo com a respetiva “Memória Descritiva” do projeto, pensava-se mobilar e guarnecer o hotel de maneira a que os hóspedes recebessem “a impressão de estarem na casa de um grande senhor, de muito bom gosto”. A partir de 1950, a Direcção dos Serviços dos Monumentos Nacionais iniciou as obras e promoveu a aquisição de mobiliário de luxo adquirido pelo Estado à Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva. Em 1953, o Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo (SNI) e a Comissão para a Aquisição de Mobiliário (CAM), instituição criada com a finalidade de conduzir os processos de fornecimento de mobiliário e de equipamentos para os edifícios públicos pertencentes ao Estado, encetaram o projeto de mobiliário e de decoração, sendo nomeados, como delegados daquele organismo, Júlia de Melo Breyner e Manuel de Melo Corrêa. O arquiteto Luís Benavente era o novo diretor dos Monumentos Nacionais, cargo que exercia a par de vogal da CAM, e promoveu a escolha do mobiliário em sintonia com o arquiteto Raul Lino. Resultou a opinião de que o mobiliário devia apresentar o aspeto parecido ao que poderia oferecer uma casa fidalga e da época da construção do edifício ou inspirado nela, sem modernismos, em excelente material e da mais apurada mão de obra.
A 29 de setembro de 1955, deu-se a inauguração do Hotel de Seteais, com 18 quartos, cujos preços eram para individual de 230 a 400 escudos e para casal de 400 a 680 escudos. Nesse dia, estiveram presentes o ministro da Presidência, Marcello Caetano, e o cardeal-patriarca de Lisboa, Manuel Gonçalves Cerejeira. A exploração foi concedia à empresa Hotel Tivoli, Lda, que se manteve até 2023.
Na minha visita, foi possível observar de perto uma evidente arquitetura residencial de estilo neoclássico. Denota-se o carácter cenográfico da construção, ao fundo do campo, adaptando-se ao desnível do terreno e do caminho do miradouro e Penedo da Saudade e enquadrando-se no Palácio da Pena pelo arco. A planta é composta por um corpo de planta em U desenvolvido em torno de um pátio e um corpo de planta retangular, ligados por muro centralizado por grande arco triunfal. A Diogo José Vito de Meneses Noronha Coutinho, 5º Marquês de Marialva, se deve a construção, em 1802, do imponente arco triunfal em homenagem ao então Príncipe-Regente D. João VI e a D. Carlota Joaquina. No interior, a ala a sudoeste tem dois pisos ligados por uma escadaria nobre, de três lanços e patamar intermédio e dois braços divergentes com guarda em balaustrada, desembocando em galeria ao nível do segundo piso. As salas são pintadas com frisos de flores e grinaldas. Merece especial referência a Sala Pillement, um tributo ao famoso pintor francês Jean Baptiste Pillement – conhecido pela botânica imaginária –, que combina a elegância do mobiliário neoclássico com a grandiosidade dos frescos originais que mostram cenas figurativas (crianças brincando) delimitadas por grinaldas e frisos, e a Sala da Convenção (Salão Nobre), com cenas marítimas mitológicas expandindo-se para o teto. O jardim é fronteiro à fachada principal, num amplo terreiro relvado conhecido como Campo de Seteais. Junto à fachada posterior, situa-se o Penedo da Saudade, onde existem uma horta e um jardim de buxo e cedro, disposto em patamar virado à paisagem.
Dos jardins do Palácio são as flores que ornamentam os quartos dos hóspedes e que, pela gentileza da D. Lucília Gonçalves, floriram o quarto número 4. Esta funcionária é uma das mais antigas e é o exemplo da continuidade de saberes na gestão deste hotel e do espírito comunitário e sentido de família que sempre houve entre gerações.
O “check-in” foi realizado no “foyer”, sentados à mesa e na presença de uma queijada de Sintra e de uma limonada feita com limões desta propriedade e adoçada com mel, após o qual o diretor-geral, Nuno Pires, apresentou as boas-vindas, gentilmente.
Por falar em coisas boas para comer, no Restaurante Seteais a gastronomia leva a assinatura do “chef” Hélder Damião. No atendimento, o cuidado dos funcionários Pedro Fazenda, Victor Lucas e Vítor Farinha está de acordo com a qualidade da ementa e a ambiência artística, a que não faltou o contributo musical de Stefano, o pianista italiano que, além de tocar e cantar temas de diferentes origens e estilos, nos obsequiou, a meu pedido, com um “Volare (Nel blu dipinto di blu)”. Se a música foi pintada de azul, o vinho foi um verde adequado à escolha gastronómica. O Singular resulta de castas cultivadas com recurso a práticas de agricultura sustentável, sendo um vinho aromático, encorpado e com um final agradável e prolongado. A refeição iniciou-se com uma divinal salada de caranguejo com maionese wasabi, seguida de um estaladiço leitão com chutney de laranja e soufflé de batata e um final, também agradável e prolongado, com um crème brûlée de maracujá.
A visita ao Valverde Palácio de Seteais Sintra Hotel coincide com o início de uma nova gestão selecionada por concurso lançado pela empresa Parques de Sintra. O investimento a realizar vai prolongar-se por 30 anos e custar 22,65 milhões de euros em obras para que o edifício mantenha o “glamour”. Por certo, nunca faltará o tradicional Chá das Rainhas. E os seus jardins estão prontos para, de novo, serem palco das famosas noites de bailado, cada qual uma noite sem fim, parafraseando o título da obra literária que Agatha Christie acabara de lançar quando veio a Portugal (“Endless Night”).
*Jorge Mangorrinha é pós-doutorado em Turismo, doutorado em Urbanismo, mestre em História Regional e Local (especialização em Património) e licenciado em Arquitetura. Autor multifacetado recebeu o Prémio José de Figueiredo 2010 da Academia Nacional de Belas-Artes. Com experiência no planeamento turístico, em Portugal e no estrangeiro, exerceu, também, como gestor técnico na Parque Expo’98 e como presidente da Comissão Nacional do Centenário do Turismo em Portugal (1911-2011). Colabora com o TNews, tendo sido o autor da rubrica “A Biblioteca de Jorge Mangorrinha”, a que se segue “Há História no Hotel” durante 12 crónicas.