É preciso que as pessoas tenham alegria em ir trabalhar para poder transmitir essa alegria ao hóspede. Esta é a regra mais básica e mais importante da hotelaria, porque não é para o dono do hotel que se trabalha. É para os hóspedes!
Meus caros, hoje trago-vos uma história, real e muito recente, de alguém que por motivos óbvios não poderei identificar.
Com o advento da alegada falta de profissionais para a hotelaria (ou como muitos ainda continua a designar por mão de obra), as empresas de RH e os hotéis fazem atualmente recrutamento através das redes sociais, nomeadamente através do LinkedIn, até aqui tudo bem e perfeitamente normal.
Através dessa plataforma, onde estão muitos profissionais de hotelaria e restauração, nomeadamente cozinheiros, pasteleiros, housekeeping, front office, entre outras, são enviados e recebidos diariamente dezenas de convites por parte de consultores ou especialistas em RH, ou mesmo de diretores de hotéis, que culminam numa mensagem ao potencial candidato a anunciar que estão à procura de candidatos para a função X e que o perfil a que se dirigem suscitou interesse para fazer parte da equipa que representa.
De seguida convidam o candidato para ter uma conversa ou entrevista online, onde anunciam ao candidato que gostavam de lhe apresentar uma proposta.
Ora, o candidato ou candidata, que na maior parte das vezes está a trabalhar, desperta a sua curiosidade e mais que não seja tenta também aferir o seu valor no mercado, ou eventualmente para esperar alguma proposta aliciante, aceita eventualmente fazer uma segunda entrevista com o Chefe-Executivo, ou na pior das hipóteses sujeita-se a fazer um teste onde lhe é pedido para preparar alguns pratos de forma a verificar o nível do candidato.
Completo todo este processo exaustivo de recrutamento chega, (ou não), a tão desejada proposta de recrutamento.
Até aqui tudo bem e perfeitamente normal.
Esta é então a história real.
O profissional contactado neste modelo, em várias propostas recebidas achou interessantes as condições previamente apresentadas, senão vejamos: uma senhora que representa uma cadeia de grandes armazéns, que também tem restaurantes, muito simpática nos vários contactos, rematou com o facto de ir falar com o Chefe-Executivo e contactar o potencial candidato nos ‘próximos dias’. Contudo, não especificou quais os dias e já passaram algumas semanas sem ter havido sequer uma linha ou um qualquer contacto.
“Talvez tenham encerrado o restaurante. Contudo dão um excelente exemplo de como ser uma empresa a não aceitar trabalhar.”
Em outro grupo hoteleiro de 5 estrelas, depois de terem sido apresentadas as condições de 930 euros e subsídio de refeição em cartão no valor diário de cerca de 7 euros, (o que acaba por ser um complemento interessante no vencimento base isento de impostos), chega a tal proposta que curiosamente é de 850 euros e não de 930, portanto aliciam com um valor e propõem outro. Outro excelente exemplo de outra empresa a não aceitar trabalhar.
Isto tudo para um emprego como cozinheiro de 2ª.
Outro exemplo vem de um hotel de luxo em Lisboa , que depois de muito interesse e de um teste durante um dia inteiro, com aplicação na prática de várias técnicas de confeção, cujo Chefe-Executivo disse ter gostado apesar de ter feito alguns reparos, (normais), e disse que ia apresentar uma proposta, atira de seguida ao de leve com a possibilidade de contratar o candidato como ‘extra fixo’. Perante a recusa do candidato em ser contratado desse modo, o Chefe-Executivo apresenta uma desculpa esfarrapada e forçada ao fim de uma semana devido à insistência do potencial candidato, a dizer que não era bem o que procurava e que desejava as maiores felicidades para o futuro.
Continuando para outro grupo hoteleiro, penso que seria o quarto que contactou o profissional através deste método, marcaram uma entrevista online depois de várias conversas, e tal deve ser a confusão naquela organização que o candidato ficou à espera online e do lado de lá nem uma alma.
É este o panorama a que chegámos para contratar pessoas qualificadas. Continuamos à pesca para lhes oferecer o mesmo de sempre. Uma mão cheia de nada a troco de várias exigências, horas não pagas e todas para o banco de horas. Por todos estes motivos a hotelaria deixou de ter interesse, e muito pior ainda a cozinha deixou de ser uma moda.
Mas o ónus da culpa não está só do lado dos gestores e diretores. Os profissionais de hotelaria, também têm culpas no cartório já que por vezes não é honesto. Responde a ofertas de emprego, troca e-mails com a entidade empregadora, compromete-se e depois ou não aparece ou responde a dizer que afinal aceitou outra proposta, fazendo os próprios diretores perderem tempo.
Nós, os profissionais também temos muitas culpas no cartório neste capítulo, como se costuma dizer.
Tendo os recém-formados cozinheiros ou candidatos a cozinheiros ou pasteleiros ou qualquer outra posição, percebendo que afinal era tudo efémero, (que tudo não passava de uma encenação nas televisões, onde médicos, engenheiros, arquitetos ou qualquer outro profissional sem formação, promovidos por alguns maus cozinheiros, mas muito bem promovidos), começaram também a deixar de querer ser cozinheiros ou pasteleiros ou qualquer outra posição.
Porque a realidade é muito diferente, o trabalho numa cozinha é duro e o que as cadeias hoteleiras estão dispostas a pagar também é anedótico no mínimo.
E é esta a vergonha a que se chegou igualmente na canibalização que existe e a falta de ética entre os pares, fruto da falta de profissionais devido a dois anos de pandemia de covid-19.
Tudo vale para aliciar profissionais de um lado para o outro, a troco de uma mão cheia de nada.
Por este andar os contratos de trabalho futuros terão de mencionar expressamente uma cláusula de rescisão, (que em bom rigor já existe noutro modelo em que se paga um valor à cabeça como prémio de contrato tendo o mesmo de ser devolvido caso o contrato não seja cumprido), mas para isso os hoteleiros terão de começar a pagar mais para o que exigem. Muito mais.
Caso contrário irão sacrificar a qualidade e a reputação ganha com muito esforço e ao longo de muito tempo, que se irá esvair através dos dedos numa fração de tempo como se de areia se trate.
E rapidamente voltaremos à hotelaria dos anos 80.
Irão surgir reclamações, posts nas redes sociais onde a informação se propaga à velocidade da luz e em tempo real, os tão desejados rankings do Tripadvisor e do Booking irão baixar, de seguida os hotéis ou restaurantes deixam de aparecer nas pesquisas, os influencers deixam de querer ser identificados com aqueles locais, e rapidamente são esquecidos. Quando derem por isso é mais um negócio que terá de fechar porque deixou de ser um negócio sequer.
Quem vai sofrer? Claro, os colaboradores e os clientes.
Estamos todos a tentar segurar o negócio do turismo até ao final do verão, altura em que a hotelaria nacional irá bater, provavelmente, no fundo do poço. Infelizmente para quem deu o máximo por esta indústria.
Até ao fim deste ano acredito que vamos assistir a mudanças, tanto no trato pessoal, como no profissional e financeiro, pelo que a empresa que neste momento mudar o seu paradigma, em relação ao seu capital humano, pessoal, profissional e financeiramente, irá ter sem sombra de dúvidas nas suas fileiras os melhores trabalhadores.
Como ja referi num artigo escrito há um ano:
É preciso que as pessoas tenham alegria em ir trabalhar para poder transmitir essa alegria ao hóspede. Esta é a regra mais básica e mais importante da hotelaria, porque não é para o dono do hotel que se trabalha. É para os hóspedes!
Assistimos ao aparecimento de uma geração que, ao contrário da minha, já não está interessada em permanecer o resto da vida na empresa, em construir a carreira subindo nos quadros da empresa, para poder ter uma vida financeiramente mais estável.
Assistimos a uma geração que quer ter uma qualidade de vida pessoal equilibrada com a profissional. Que quer ser respeitada, que não quer “assentar” demasiado cedo.
Assistimos a uma geração que quer viajar, correr mundo, conhecer mundo, conhecer culturas.
E pergunto eu. Como será possível manter estas pessoas na empresa?
Só consigo ter respostas considerando o respeito pelas pessoas, dando condições e atribuindo objetivos bem delineados, pagando salários justos, incentivando, formando, gostando, tratando a equipa de modo a que não pareçam ser um de nós, mas que o sejam de facto como se fossem da nossa família. Porque no fundo as nossas equipas são a nossa família quer queiramos quer não. A que nós escolhemos.
Como diz um autor na área da gestão de pessoas: “Na nobre missão de gerir pessoas em contextos empresariais onde cada vez mais pessoas e negócios se assumem como duas faces de uma mesma moeda. Ou seja, onde a consciência de que a concretização de objetivos depende, em grande medida, na forma como as pessoas se mobilizam, se vinculam, se comprometem, se excedem de forma permanente em busca de atitudes e comportamentos orientados para a excelência e a superação constantes. Trata-se de transformar as nossas pessoas em verdadeiros fãs dos nossos negócios e das nossas empresas.”
Pergunto eu novamente. Como podemos manter as nossa equipas com profissionais que estudaram e pagaram os seus cursos motivadíssimos, a trabalhar, quando esses mesmos profissionais fazem as tais 3 a 6h extraordinárias, (pro-bono que é como quem diz para o ‘banco de horas’), e depois as empresas colocam os chamados “extras”, a maioria sem formação, sem conhecimento da profissão, a ganhar à hora 3 ou 4 vezes mais? Porque de facto a maioria das empresas de trabalho temporário é outro negócio milionário, muitas das vezes até tendo parte interessadas dos próprios chefes de cozinha. Estão a ver a polemica dos médicos tarefeiros? É exatamente igual.
Imaginem um cozinheiro/pasteleiro a fazer o trabalho de um “médico tarefeiro”… ia correr bem, não ia??
Pergunto de novo. Expliquem-me como se pode manter assim uma equipa motivada?
Repito, porque tem de ser sublinhada esta verdade. Acredito que até ao fim do ano vão existir muitas mudanças para melhor, mas primeiro nós os chefes, managers, diretores, gestores, temos de ter a consciência de que é necessário mudar.
Porque as grandes empresas do agora, serão as pequenas empresas do amanhã se não mudarem a sua mentalidade.
Citando de novo o gestor de pessoas, “As empresas sem pessoas não fazem sentido. Ligar pessoas a pessoas é urgente! Ligar estas pessoas aos negócios é determinante, é essencial, para a concretização dos resultados. No fim do dia, a pessoas são essenciais para que as empresas existam e prosperem.”
E remata: “Gosto muito de pessoas, mas é fantástico ver como com essas pessoas se atingem resultados.”
Pessoas para Pessoas, Senhores, Pessoas para Pessoas
Por Francisco Siopa
Chefe Executivo de Pastelaria e Formador
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