“Defender o património não devia significar isolá-lo da emoção humana, mas devolvê-lo a ela. Não se trata de transformar monumentos em palcos permanentes, nem de banalizar o sagrado — trata-se de compreender que o verdadeiro respeito vem do envolvimento, não da distância”.
Há lugares onde o silêncio é tão regulamentado que quase se ouve o ranger do papel timbrado. Para acender uma vela, é preciso autorização. Para dançar num claustro, um parecer. Para projetar uma imagem sobre uma fachada, um dossiê técnico, um plano de segurança e a bênção de três departamentos papais. E, quando finalmente chega o “sim”, a inspiração já se foi embora — envelheceu na fila de espera da burocracia.
Temos o património cultural tão bem guardado, tão protegido de tudo, que às vezes parece também protegido da própria vida. O excesso de zelo tornou-se a nova forma de negligência. Queremos preservar as pedras, mas esquecemo-nos de preservar o pulsar humano que lhes deu sentido. E, paradoxalmente, quanto mais tentamos evitar a sua erosão física, mais aceleramos a sua erosão simbólica: a da relevância.
Nos museus contemporâneos, a arte já se pode tocar. Há esculturas para pisar, obras para manipular, instalações que pedem a mão do visitante como um convite à cumplicidade. É curioso — e irónico — que, enquanto a arte contemporânea se aproxima do público, o património histórico pareça afastar-se cada vez mais. É como se tivéssemos medo de que a respiração humana profanasse a pedra. Mas o verdadeiro risco não é profanar — é esquecer. E não há decreto que proteja da indiferença.
As regras multiplicam-se, os regulamentos engordam, e o gesto simples de fazer um evento num espaço patrimonial transforma-se numa odisseia de carimbos. Cada departamento tem o seu formulário, cada técnico a sua interpretação, cada reunião o seu ritual. No fim, todos estão seguros — menos o património, que continua imóvel, esquecido, inerte. O paradoxo é cruel: as mesmas entidades que dizem querer “valorizar o território” são, muitas vezes, as que o confinam à vitrine.
Há quem chame a isto prudência. Eu chamo-lhe medo. Medo do erro, da crítica, da responsabilidade. Mas o medo é o pior conservador: é o que transforma lugares vivos em ruínas burocráticas. Porque o património, quando deixa de ser habitado, morre. Não de velhice, mas de ausência.
Como músico e criador, acredito que cada espaço tem uma frequência própria — um som, uma respiração, uma memória. Um claustro não é apenas pedra: é acústica, é sombra, é tempo condensado. Quando uma voz se eleva ali dentro, não está a “usar” o património — está a dialogar com ele. E essa conversa é o que o mantém vivo.
Defender o património não devia significar isolá-lo da emoção humana, mas devolvê-lo a ela. Não se trata de transformar monumentos em palcos permanentes, nem de banalizar o sagrado — trata-se de compreender que o verdadeiro respeito vem do envolvimento, não da distância. O que é intocável é, por natureza, inacessível. E o que é inacessível, com o tempo, torna-se irrelevante.
Enquanto os museus experimentam, arriscam e permitem que o visitante toque, sinta e participe, os espaços patrimoniais continuam a exigir distância, silêncio e papéis. Talvez esteja na hora de inverter a lógica: permitir que a arte — feita com respeito, rigor e emoção — volte a ser o ritual que consagra o lugar, não o que o profana.
E há ainda um detalhe que todos conhecem, mas poucos dizem em voz alta: quando o evento é para a Presidência da República, para um banco ou para alguém de grande influência, as regras mudam misteriosamente de tom. As portas abrem-se, as licenças evaporam-se, os pareceres surgem por milagre. O património, que ontem era intocável, torna-se subitamente disponível, iluminado, até sorridente. Talvez não sejamos tão rigorosos como gostamos de parecer — apenas seletivos na nossa rigidez.
Porque, no fundo, o património não precisa de proteção contra os artistas. Precisa de proteção através deles. São os criadores que o renovam, que o reinterpretam, que o fazem atravessar gerações. É na vibração de uma voz, no eco de um violino, na projeção de uma imagem sobre a pedra antiga, que o passado se torna presente e o presente ganha profundidade.
A verdadeira ameaça não é o projetor que aquece a parede. É o arquivo que nunca é aberto, o espaço que nunca é usado, o formulário que nunca é aprovado. E, quando tudo é interdito em nome da preservação, resta-nos um património impecavelmente morto — como uma estátua encerada num museu sem visitantes.
Não precisamos de menos proteção; precisamos de mais confiança. Confiar nos artistas, nos produtores, nos curadores — em quem sabe ouvir o espaço antes de o ocupar. Porque um património que não se ouve, não se toca e não se vive… já não é herança. É apenas relíquia.
Por Miguel Oliveira
É diretor artístico da IMAGIN’ART – Performing Arts. Trabalha com instituições públicas, municípios, companhias de cruzeiros e operadores turísticos na criação de momentos artísticos que cruzam memória, emoção e identidade.






