“Seria bastante mais desejável se Portugal fosse reconhecido como um país que dá prioridade, na escolha do modelo turístico a desenvolver, ao bem-estar das comunidades residentes”.
A história do turismo internacional português como motor da economia nacional desenvolveu-se a partir de inícios da década de 80 no século XX, num contexto de enormes dificuldades socioeconómicas do País. Essas dificuldades, de que se destaca a conturbada transição de um regime totalitário para uma frágil democracia, o imperativo da total reconversão de um insipiente tecido económico, sobretudo devido à perda das colónias, bem como pelos indicadores de desenvolvimento humano dificilmente críveis num país Europa Ocidental. Neste tipo de contextos, a busca desesperada de alternativas ao desenvolvimento económico por parte dos decisores políticos é frequentemente má conselheira. Na esteira do vizinho ibérico, Portugal encontrou na atividade turística essa alternativa, sobretudo ao nível do equilíbrio da balança de pagamentos com o exterior e da criação de emprego. Assim, nos anos 80, Portugal chegou a ser o país da Europa com maiores taxas de crescimento da atividade turística, em número de hóspedes e dormidas.
Porém, a forma como o turismo português cresceu nesta época de “desespero por alternativas económicas” deixou marcas indeléveis que perduram até hoje, tanto nas próprias características do setor como nas perceções frequentemente erróneas que a sociedade civil ainda parece deter acerca dos objetivos inerentes ao desenvolvimento turístico.
Na década de 80, a extrema fragilidade economia portuguesa, levou a que se tivesse tomado o turismo como um dos motores do desenvolvimento do País. Para tal, zonas costeiras com elevado potencial para o turismo de sol e praia foram alvo de rápidas e drásticas transformações físico-espaciais e socioeconómicas com vista a converter o turismo numa das principais “indústrias” do país, sobretudo ao nível das exportações. Assim, foi natural a opção pelo desenvolvimento de economias de escala nestas regiões, em que se promoveu a lógica do turismo de massas e, consequentemente, da oferta de uma experiência turística simplista, previsível e fortemente sedentária, do “hotel para a praia e da praia para o hotel”. Para tal, foi necessário recorrer a players internacionais na área da hotelaria, bem como a intermediários (operadores turísticos) capazes de promover e comercializar a recém-criada oferta turística deste novo destino turístico, junto de potenciais visitantes do Norte e Centro da Europa.
Consequentemente, o desenvolvimento do turismo português começou por ser exógeno, promovido e conduzido essencialmente por interesses e agentes externos. A prioridade destes mesmos agentes era, compreensivelmente, a obtenção de lucros rápidos com base na exploração desenfreada dos recursos turísticos e de salários baixos. Por outro lado, esses mesmos agentes não detinham o conhecimento acerca de Portugal, nem tão-pouco o interesse necessários ao desenvolvimento de um turismo baseado na cultura e identidade das comunidades residentes.
Ainda que admitindo a importância que este crescimento turístico teve para a economia portuguesa no contexto muito particular e problemático dos anos 80, o modelo que adotou teve, a médio e longo prazo, custos muito elevados para o próprio setor. A abordagem ao desenvolvimento de destinos turísticos consensualmente apontada com a menos sustentável designa-se, habitualmente, como Boosterism. A mesma privilegia um forte e rápido impulso ao crescimento do setor, com origem na iniciativa externa, descartando o seu planeamento estratégico e adotando uma visão utilitarista do património natural e cultural. Sobretudo no Algarve, Costa de Lisboa e Madeira, foi esta a abordagem ao desenvolvimento da atividade turística, tendo o resto do país permanecido num estado embrionário no que ao setor diz respeito.
Passado o período conturbado de inícios da década de 80, a que se seguiu a adesão de Portugal à CEE, em 1986, e do indiscutível desenvolvimento do país ao longo dos anos 90, seria razoável admitir que o modelo de desenvolvimento turístico português se teria alterado radicalmente. Porém, não só este modelo se manteve praticamente inalterado como até se agravaram alguns dos seus efeitos negativos. Segundo a Confederação do Turismo Português, em inícios do novo milénio, as comissões retidas pelos intermediários dos países de origem dos turistas que visitavam Portugal representavam, em média, 24% do preço de venda dos respetivos pacotes turísticos. A este leakage para a economia portuguesa acrescia ainda o desconto que os serviços turísticos em Portugal (tais como unidades hoteleiras) eram quase forçados a conceder aos operadores turísticos internacionais para que estes os integrassem nos seus pacotes turísticos.
Em 2019, supostamente o melhor ano de sempre do turismo português, mais de 70% das dormidas em Portugal se concentraram nas NUT II de Lisboa, Algarve e Madeira. Todos os indicadores turísticos do turismo português continuavam, neste passado muito recente, a apontar para excessivas concentrações (i) territoriais; (ii) motivacionais (sol e praia); (iii) sazonais; (iv) ao nível dos principais mercados emissores (com apenas dois mercados externos – Reino Unido e a Espanha – a representarem mais de 30% da procura turística internacional) (v) em termos de canais de distribuição, em que se verifica a continuação da hegemonia dos grandes operadores turísticos internacionais, precisamente aqueles que representam, habitualmente, mais desvantagens para um destino turístico pelas comissões que retêm.
Ao nível dos contributos diretos do turismo para a qualidade vida dos trabalhadores do setor, todos os indicadores continuam a demonstrar inequivocamente que, quando se trata de trabalhar por conta de outrem, o turismo ainda é um dos que oferece salários mais baixos e permite menos direitos laborais.
A excessiva dependência do sistema português de agentes externos, que estruturam uma oferta simplista com base no turismo de sol e praia, e a comercializam no exterior também têm servido de barreira ao desenvolvimento de tipos de turismo alternativos em outras zonas do País, tais como no interior, de cariz marcadamente rural. Assim, por exemplo, em 2019, apesar de representar mais de um terço do território nacional e de contar com apenas 7% da população portuguesa, o Alentejo obteve uma proporção ainda menor de dormidas, obtendo uns parcos 3,4% do total registado em Portugal nesse ano.
A forma desestruturada como turismo português se começou por desenvolver, com recurso a grandes investimentos hoteleiros provenientes do exterior, acabou por deixar na própria opinião pública portuguesa uma visão algo deturpada do papel que o turismo deverá desempenhar no desenvolvimento de comunidades. Em primeiro lugar, creio que passámos a considerar como natural a enorme concentração turística em certas regiões que desenvolveram o turismo de sol e praia, como se as restantes não fossem “talhadas” para o turismo. Em segundo lugar, o facto de sempre ter predominado em Portugal um desenvolvimento turístico exógeno, com base em experiências turísticas simplistas, sedentárias (e não de mobilidade, de descoberta de um território) e, como tal, facilmente “massificáveis” terá, eventualmente, privado a opinião pública e os decisores da noção de que em outros tipos de turismo, como o cultural, é essencial um desenvolvimento endógeno, em que se exige que sejam as próprias comunidades residentes a estruturar produtos turísticos complexos.
Como tal, apesar de muitas organismos públicos de âmbito turístico locais e regionais do interior do país terem investido consideravelmente em iniciativas de promoção turística, tais como a participação em feiras do trade, a organização de eventos ou publicidade B2C, o panorama da excessiva concentração da oferta e da procura turísticas em zonas restritas do litoral português (sobretudo Lisboa e Algarve), apenas se agravou. Se é verdade que as regiões do interior têm hoje mais turistas e negócios turísticos comparativamente há dez anos atrás, também é evidente que o turismo tem evoluído consideravelmente mais nas regiões do litoral, tanto ao nível das dormidas como das receitas por hóspede.
O reconhecimento internacional que Portugal tem vindo a obter no setor do turismo, que se traduziu na recente obtenção de galardões, incide sobretudo na qualidade da oferta turística, mesmo que esta possa não contribuir verdadeiramente para o desenvolvimento sustentável das comunidades residentes. Ao invés, seria bastante mais desejável se Portugal fosse reconhecido como um país que dá prioridade, na escolha do modelo turístico a desenvolver, ao bem-estar das comunidades residentes.
Nos antípodas desta lógica de desenvolvimento turístico exógeno, com uma estranha obsessão pela criação de produtos turísticos desalinhados com a identidade e valores das comunidades residentes, que não questionam o real papel que o turismo deverá desempenhar para o desenvolvimento sustentável das comunidades residentes, estão alguns projetos cujo reconhecimento pela sociedade civil tarda em chegar. Tal é o caso de alguns dos projetos co-financiados pelo PROVERE (Programa de Valorização Económica de Recursos Endógenos) de âmbito turístico, tais como a Rota do Românico, Aldeias do Xisto, Aldeias Históricas de Portugal ou Rota Vicentina, entre outros. Ao longo de décadas, estes projetos foram capazes de criar marcas-destino indiscutivelmente estruturantes para a atividade turística das regiões em que se implementaram. As mesmas têm vindo a desenvolver esforços muito meritórios, de forma sistemática, para garantir que as comunidades residentes sejam duplamente protagonistas do processo de desenvolvimento turístico: nos benefícios económicos gerados pelo turismo e na colocação da história, identidade e modos de vida locais no centro da experiência turística oferecida aos visitantes. Por outro lado, ao invés da lógica, predominante em Portugal, que ainda coloca a tónica do desenvolvimento turístico na promoção de negócios imobiliários de âmbito hoteleiro, estes projetos têm vindo a estruturar paulatinamente, num processo de contínua capacitação e valorização das comunidades locais, experiências turísticas que são pensadas para dinamizar os frágeis tecidos sociais em que têm lugar.
A meu ver, urge reconhecer e conferir cada vez mais visibilidade ao trabalho destas entidades enquanto elementos estruturantes da atividade turística e do desenvolvimento sustentável das comunidades nas quais operam. Até para que as boas práticas que desenvolvem sirvam de incentivo ao surgimento de outras marcas-destino com a mesma lógica de sustentabilidade socioeconómica de base comunitária, focada nos interesses, necessidades e identidade dos residentes.
Por João Vaz Estêvão
Diretor da Licenciatura em Gestão Turística, Cultural e Patrimonial da Escola Superior de Tecnologia e Gestão de Lamego do Instituto Politécnico de Viseu