É a pergunta que faço…
Francisco Siopa
Está a formação prática de cozinheiros, pasteleiros e F&B, transformada numa feira de vaidades, egos e formadores mais dedicados aos seus TikTok’s do que concretamente a formar profissionais?
Este artigo termina uma série de cinco artigos escritos nos últimos três anos sobre a hotelaria e restauração, os seus problemas e possíveis soluções, e ao fim de três anos é possível vermos já algumas melhorias. Inicialmente, os grupos hoteleiros que não pagavam a estagiários começaram a pagar; o salário mínimo em grupos hoteleiros já ultrapassou o ordenado mínimo nacional; as famigeradas horas extraordinárias começaram a ser pagas ou os horários cumpridos. Depois, temos os “outros”. Aqueles que, alegadamente pela falta da dita mão de obra, apostaram fortemente e barato na imigração que temos neste momento. E depois ainda existem os do costume que continuam a dizer que a formação é de má qualidade e que não é adequada, mas quanto a esses já lá irei. Muitos dos empresários de restauração foram chefes primeiro e criticavam o sistema, mas nada fizeram pela mudança; aliás, alguns desses são os que contratam, desde há muito tempo, profissionais ou alegados profissionais baratos e sem formação e baratos (quanto mais barato pagarem a troco de mais horas de trabalho, melhor), o que denota que quem está desatualizado e desfasado no tempo e no setor são mesmo os ditos empresários, mas adiante.
Tanto se falou nos últimos cinco anos, principalmente durante e depois da Covid-19, sobre formação profissional ou da falta dela. Esqueceram-se foi de que a formação tem de ser um processo contínuo, tal como o processo de carreira dos profissionais é. Existe um caminho a percorrer desde que se nasce para o mundo profissional até se terminar por reforma. Porque nunca ninguém sabe tudo! O caminho é como plantar um canteiro, tem de ser alimentado todos os dias, tem de ser regado como as flores, tem de existir formação contínua e não achar que o aluno, seja de F&B, cozinha, alojamento, etc., já vai totalmente preparado para o mercado de trabalho. E todos sabemos que não é assim. E esse caminho também tem de ser alimentado pelos próprios profissionais do setor que se disponibilizem a dar formação no seu tempo livre e com quem aprendemos todos os dias. O caminho que cada um faz é diferente, muitas das vezes pelo ponto onde cada um se encontra nele, mas como podemos ler no livro de James Norbury, ‘O Grande Panda e o Pequeno Dragão’, “O que é mais importante”, perguntou o grande panda, “a jornada ou o destino?” “A companhia”, disse o pequeno dragão. É exatamente na companhia que nos devemos centrar quando falamos de formação profissional.
Entre 2010 e 2019, podemos dizer que foi o El Dorado da formação, por ter sido a época em que saíram das escolas e universidades os melhores alunos e eventualmente alguns se tornaram nos melhores profissionais do mercado (se formos a olhar para o panorama geral, grande parte dos melhores profissionais são dessa época, altura em que a formação era bem “alimentada” por formadores de qualidade). Nos últimos cinco anos, por culpa de novos planeamentos dos cursos, de estruturação, falta de investimento em matéria-prima de qualidade, e alguns formadores por não concordarem com as direções escolares foram “dispensados”, começámos a assistir à descredibilização do ensino formativo hoteleiro em Portugal. Se verificarmos alguns corpos docentes de algumas escolas, verificamos inclusive que existem muitos formadores de cozinha e de pastelaria que nunca trabalharam sequer numa unidade hoteleira, restaurante ou pastelaria. Ou seja, nada adaptados ao que é a nova realidade hoteleira, que está em constante transição e ebulição. Continua-se a dizer pelos corredores dos meandros do setor hoteleiro que a formação é inexistente e inadequada e que faltam profissionais no mercado, o que não deixa de corresponder a alguma verdade e podemos verificar, para quem gosta de andar sempre com os gráficos e rácios atrás, que o rácio de formação para o setor continua a ser muito inferior às necessidades.
Os responsáveis pelo turismo em Portugal (não confundir com o Turismo de Portugal) continuam a dizer nos diversos meios de comunicação que têm ao dispor, que as profissões da hotelaria e turismo têm 100% de empregabilidade, o que é correto. Só que como é habitual só dizem o que lhes interessa e o que querem que as pessoas ouçam ou leiam e esquecem-se de mencionar que 30% por cento dos alunos que concluem o curso, ao fim de um ano, não seguem a área ou desistem. Alguns porque não foram bem preparados profissionalmente e pessoalmente, outros porque não se adaptaram com a realidade que iam encontrar, outros porque não sabem que área da hotelaria escolher (em cozinha, por exemplo, tem vários tipos de cozinha). Os alunos têm de sair da escola já a saber que área da hotelaria pretendem seguir, ou no caso dos alunos de cozinha, que tipo de cozinha querem. Saírem da escola com esta certeza é fundamental para o sucesso de todos. Trinta por cento (30%) significa que numa turma de 20 alunos, em média desistem seis alunos depois de formados, multiplicando por 20 escolas (um exemplo), são 120 profissionais que perdemos num ano. E agora multipliquemos por apenas 5 anos??? E por que motivo se perdem 30% dos alunos dos cursos de formação hoteleira? É simples, como o que interessa são os resultados dos institutos de formação em que sem professores qualificados tecnicamente e pessoalmente, transformam as aulas em workshops temáticos que rendem muito mais dinheiro ou que podem ser financiados pelo IEFP através da formação profissional modular.
Depois temos outras modalidades em que algumas entidades que se autodenominam ‘escolas’ onde se pode tirar um curso de cozinha ou pastelaria em dois meses, com o título final de Chef de qualquer coisa, ou ainda mestrados online de cozinha e pastelaria, (como se fosse possível conseguirem aprender a estrelar um ovo, bater umas claras no ponto ou mesmo temperar chocolate, só de ver no Youtube ou em plataformas online), a troco de um custo exorbitante para os alunos. Mas pior ainda é alguns colegas conceituados venderem o seu nome para colocar nesse tipo de formações, que sabem ser completamente erradas, já para não lhes chamar algo muito mais grave.
Esta é uma atividade e um setor onde podemos fazer uma analogia com os médicos. Dificilmente poderão ter a perceção do sentir do doente se não estiverem a colocar a mão dentro de alguém, mesmo cadáver, nos primeiros anos do curso de medicina. Na cozinha e na pastelaria também temos de colocar a mão na massa para termos a perceção das texturas, da densidade, da temperatura, entre outras. Nada que se consiga fazer online Infelizmente e excetuando algumas escolas do Turismo de Portugal como Lisboa, Coimbra, Porto ou Lamego, e algumas Escolas de Formação Profissional, como Casa Pia, Centro de Formação Profissional da Pontinha, EPAV-Colares, e poucos mais bons exemplos, não estará o ensino de hotelaria e restauração em Portugal, na generalidade transformado numa feira de vaidades? Vejamos, os alunos perdem horas e horas de formação, não para aprender os elementos básicos, mas para treinarem para concursos sem nexo e qualidade, em que muitos de nós, chefes de cozinha e de pastelaria, somos convidados para jurados, mas depois quando estamos a avaliar os trabalhos dos alunos temos de ser simpáticos com o ego exponencialmente aumentado do aluno, que já por si está a sofrer com o ego do professor. Onde alunos são ‘forçados’ a entrar em concursos, que não dominam, apenas pela sustentabilidade do ego do seu formador, ou da direção das escolas, em que do mau ou bom resultado do aluno no concurso depende a viabilidade da atividade das escolas, quase como se fosse um concurso de direção de escolas nesses concursos. Quantas horas perde um aluno, por curso ou trimestre, porque tem de participar em concursos ou participar em atividades que nada têm a ver com a sua formação e em que no final é premiado pela escola não por saber, mas porque conseguiu ganhar o prémio para a escola, muitos deles ficando até como formadores nessa mesma escola depois do estágio profissional, no qual se verificam extremas dificuldades e insuficiências básicas de formação? Parece quase o Portugal dos Pequeninos. Como diz um grande amigo benfiquista que tenho, parece o Sporting Clube de Portugal, (o meu clube do coração), que ainda quer ficar com os louros das bolas de ouro ganhas pelo Cristiano Ronaldo, por ter sido formado na Academia em Alcochete. Gostava então de deixar a seguir algumas perguntas sobre estas matérias que tenho verificado pessoalmente e quase diariamente na atividade formativa que desenvolvo, para além da atividade profissional que tenho. Podemos nos focar, por favor, apenas na formação do aluno, na sua valorização de competências e valores, deixando de parte as peneiras e os egos alheios? Podemos nos focar no acompanhamento do aluno quando termina o curso e vai para o mercado de trabalho, e precisa da nossa ajuda, sem peneiras, sem demagogias e sem egos? Podemos nos focar naquilo que os alunos nos pediram para fazer. Formá-los e bem? O próprio sistema de estágio está desadequado e obsoleto, não faz sentido algum o aluno realizar seu estágio a meio de um semestre e ter de voltar para a escola. O aluno pretende ficar logo a trabalhar no fim de realizar o seu estágio, porque é a oportunidade perfeita para arranjar emprego. Isto é sabido por todos, formadores, professores, responsáveis políticos, etc., e porque não se muda? Por conforto? Por comodismo?
A Alemanha é conhecida em todo o mundo, pelo seu sistema de formação dual, que combina de maneira harmoniosa a teoria e a prática. Este modelo tem sido um sucesso internacionalmente e é a razão principal para a baixa taxa de desemprego jovem na Alemanha. Não conseguimos o mesmo em Portugal? Exemplo: Se prolongarmos o estágio do aluno para seis meses em vez dos atuais dois/três meses, com remuneração mínima obrigatória de 500€ e o estágio a ser realizado no fim do curso, iremos todos no curto espaço tempo de dois a três anos, realizar uma estruturação da hotelaria, com cabeça, tronco e membros, algo muito preciso, acreditem. Em seis meses, haverá muitas mais oportunidades criadas para o aluno ficar na unidade hoteleira ou restaurante onde realiza o seu estágio, mitigando assim, muitos dos alunos que abandonam a área no 1º após concluir o curso. Acredito que este sistema iria reduzir apenas para 5% o número de alunos que desistem. Outro exemplo, um que os alunos iriam adorar fazer nas escolas, porque não transformar o refeitório (a cantina da escola), num restaurante para os próprios alunos, onde se iria recriar um restaurante, onde os alunos de serviço, iriam estar a dar serviço, os alunos de cozinha, na cozinha, os alunos de Mesa e Bar, a dar o serviço de sala aos próprios colegas. Um restaurante a funcionar com menu ou à La Carte. Algo tão simples e divertido, que os alunos iriam adorar, mas não se faz, porquê? Comodismo? Demasiado trabalho? É melhor os formadores passarem as aulas nas redes sociais, provavelmente. É para isso que são pagos (ironia). Queremos colocar-nos ao lado das instituições de formação internacionais e nivelar a formação com essas entidades formativas, mas em alguns aspetos, como se diz no atletismo, nem saímos dos blocos de partida. Nem para começar. Como formador e Chef de uma unidade hoteleira que recebe muitos estagiários nacionais e internacionais, observo a atitude com que a maior parte dos nossos chegam até nós, cheios de soberba e certezas absolutas de que sabem alguma coisa e quando lhes perguntamos o que fizeram nos módulos X, Y ou Z, respondem que andavam em feiras e concursos. Muitos nem um Béchamel fizeram na escola, muitos nem um frango (um frango) desmancharam na escola. Não serão as propinas que os alunos pagam suficientes para se dar formação e ter matéria-prima de qualidade e em quantidade? Não está na altura de mudarmos os modelos de formação, deixarmos os anos 90 para trás e formarmos para o futuro, olhando para aquilo que a hotelaria está a precisar agora e no futuro? Não está na altura de explicarmos aos alunos que a profissão deles não é ser Guest Relations, Concierge, Cozinheiro, Barman, Pasteleiro, mas sim, fazer o cliente feliz através da melhor experiência possível que lhe pode proporcionar com o trabalho que desenvolve? Mas para que isso aconteça, nós os formadores temos que fazer os alunos felizes e termos orgulho em quem estamos a lançar para o mercado de trabalho não estando nós, formadores, direção de escola ou Chefes, preocupados com a nossa própria valorização e ego pessoal. Ou vamos voltar aos anos 80 muito rapidamente, em que ia para cozinha, pastelaria e mesa-bar, quem não tinha estudos, formação e ou não prestava para a escola, e vocês sabem bem que era assim.
Espero e desejo que este meu texto sirva de mais um elemento de reflexão para todos os que, como eu, trabalham todos os dias para proporcionar a melhor experiência que temos para dar aos nossos alunos, colegas e a todos quantos entram numa unidade hoteleira à espera do melhor, como se de um cliente tratasse. Afinal, continuamos a trabalhar todos os dias para sentirmos orgulho no que fazemos e nas pessoas que formamos. E orgulho é diferente de ego, não misturar. Um abraço do tamanho do mundo e vénia aos Formadores e Escolas que verdadeiramente formam alunos bem formados por este Portugal. Aos outros… bem aos outros, que coloquem a mão na consciência. Sejam felizes e façam os outros felizes!
Por Francisco Siopa
É Chefe Executivo de Pastelaria e Formador.
Excelente
Bravo!!! Tive a honra de ser aluna deste grande chef de pastelaria, mestre chocolateiro e sobretudo, um fantástico formador e ser humano.
Obrigada Francisco 🙏🏼