“Seis décadas a ver Cascais a acontecer”
Por Jorge Mangorrinha
Natural de Aveiro, João Soares cumpria o serviço militar em Cascais e passava obrigatoriamente em frente do prédio pertencente a um casal, cuja filha despertava a maior das atenções ao jovem aveirense quando ela se assomava à janela. A casa tinha sido erigida no início da década de 1870. No piso térreo, funcionava o Café Tavares, bazar, mercearia e cafetaria, cujo nome era o do próprio apelido dos proprietários, António Tavares da Silva e Ermelinda Gil, onde se juntavam, em tertúlia, os senhores que debatiam os assuntos do quotidiano. Este estabelecimento abastecia a Casa Real quando os seus membros se instalavam na Cidadela durante o verão. Pouco tempo depois realizou-se o casamento entre Elisa Gil Tavares da Silva e João Soares, e um outro sonho floresceu.
A ideia de se fazer um hotel para substituir a casa antiga surgiu de João Soares, que a propôs aos sogros, até porque a Câmara Municipal tinha o objetivo de expropriar a casa para passar a Avenida Marginal. Apesar de alguma surpresa do sogro, aderiu e financiou o início da obra. Apresentou o projeto à Câmara, assinado pelo arquiteto Alberto Cruz, com as reservas financeiras do casal de comerciantes. A visão de João Soares foi ao ponto de negociar a permuta do terreno contíguo à casa por parte do terreno pertencente à sogra Ermelinda Gil para a Câmara construir o Bairro dos Pescadores. A construção do Hotel Baía teve início a 19 de março de 1959 e abriu as portas a 17 de abril de 1962. Manteve-se com três estrelas até recentemente, quando conseguiu mais uma após um significativo investimento de 2,5 milhões de euros.
Na vila, a oferta hoteleira tinha sido iniciada pelo Hotel do Globo, Hotel Lisbonense e Hotel Central (depois Hotel Bragança), mas nenhum como o moderno Hotel Baía.
Alberto Cruz, portuense a viver em Cascais, também seria o arquiteto do Hotel Cidadela e do edifício de apartamentos da Gandarinha, tal como projetou a ampliação do Palace Hotel do Estoril. No âmbito da conclusão da sua licenciatura em Arquitetura, desenvolveu um projeto para uma residência unifamiliar para uma filha de Fausto de Figueiredo, empresário ligado ao turismo, proprietário do Hotel Palácio e da concessão do Casino Estoril.
Nos anos de 1972 e 1973 o Hotel Baía recebeu a sua primeira expansão. O restaurante e a sala passaram do 3.º piso para o rés-do-chão e uma sala de banquetes e de reuniões foi construída no piso-1. O 25 de Abril resultou num rude golpe para este hotel, que foi tomado por uma comissão de trabalhadores afetos à esquerda radical da época. O proprietário passou a ter a cabeça a prémio. A filha e o marido emigraram para o Brasil.
No regresso, no início dos anos 80, a família montou uma logística para provarem a legítima pertença. Numa madrugada conseguiram entrar e retomar o hotel, com a ajuda de uma equipa de segurança contratada para o efeito. António Manuel Soares, Luís de Sá Coruche, Fernando José Marques e Tertuliano Ribeiro Gomes conseguiram recuperar os ativos. Foi um ato heroico, depois de outras tentativas sem sucesso, inclusivamente por ordem do tribunal a favor da família. O hotel tinha passado por uma fase de autogestão, até 22 de novembro de 1982, quando a Secretaria de Estado do Turismo autorizou que os fundadores fossem novamente reconhecidos como legítimos proprietários e recuperassem o hotel da desastrosa intervenção dos trabalhadores. O país recuperava da instabilidade dos anos anteriores, gerando assim um clima de maior confiança. O Hotel Baía foi recuperado, mas, em 1983, sofreu com as cheias, que o inundaram. Foi um outro golpe para os legítimos proprietários, contudo, a sua firmeza e o amor pelo hotel foram os propulsores da recuperação.
A segunda ampliação ocorreu entre finais de 1988 e início de 1990. A fachada Norte foi totalmente renovada. Foi construída a piscina e abriu-se um solário. Foram renovadas as diversas salas do rés-do-chão e do piso-1. Em 2005 foi concluída uma nova ampliação, com obras de remodelação e a construção de um parque de estacionamento subterrâneo.
A pandemia levou a que no dia 23 de março de 2020 os últimos clientes saíssem do hotel e grande parte dos colaboradores entrassem em regime de “layoff”. Porém, o hotel nunca fechou portas. Houve sempre alguém para alojar, até porque os outros hotéis estavam fechados. Esclarece o administrador Afonso Coruche: “Recebíamos um marido que tinha discutido com a mulher e ido dormir para o hotel ou um mecânico do Algarve que veio reparar um barco à marina de Cascais e acabou por ficar 15 dias. Fomos acumulando quartos ‘por fazer’ e depois chamávamos uma colaboradora do ‘housekeeping’, que vinha trabalhar um dia e fazia X quartos. Fomos insistindo em manter o hotel aberto, contra tudo e contra todos, e depois o que se verificou, à medida que o Covid foi passando e enquanto uns se encostavam aos subsídios que eram uma mão cheia de nada, fomos recebendo cada vez mais clientes, até que chegou a uma altura em que já estávamos em ‘break even’, enquanto outros hotéis se mantinham fechados. Foi uma verdadeira prova de resiliência”.
Este é o mesmo sentimento que, presentemente, se descobre em Afonso Coruche e sua mãe Conceição Coruche, secundados diretamente pelo diretor-geral, Fábio Alves, e pelo diretor de Food & Beverage (F&B), José Pedro Canelas: “Sem eles o nosso trabalho seria muito mais difícil. São eles que diariamente imprimem a força motriz desta empresa. A eles estamos muito gratos.”
Houve novos investimentos, com capitais próprios, já com uma terceira geração, com projetos do arquiteto José Alves Bicho, que exerce em Cascais. Mais recentemente, interveio o ateliê Conceitos de Arte, uma referência nas áreas da arquitetura e do design de interiores.
Nos tempos mais recentes o investimento focou-se na remodelação dos quartos, renovação da piscina, melhoramentos no setor de IT, com o investimento numa “web app” que facilita a comunicação entre os clientes e os serviços do hotel e também na renovação do WiFi, oferecendo aos hóspedes uma estada moderna e conectada. Os serviços foram ampliados e aprimorados, com especial atenção ao setor de F&B, que agora inclui opções gastronómicas ainda mais sofisticadas e diversificadas. Além disso, o hotel introduziu o serviço de “turndown”, ou seja, a abertura de cama, virando ligeiramente o edredão, a ligação da luz ambiente e o quadrado de chocolate sobre a cama, no início da noite, elevando o nível de hospitalidade e a atenção aos pormenores.
Precisamente com os atuais proprietários e administradores tive o prazer de ter uma agradável conversa. De fino trato, Conceição Coruche e Afonso Coruche percorreram os marcos históricos desta unidade hoteleira e já olham para uma quarta geração, também ali presente na pessoa do Pedro Afonso.
Em relação à perda de um tratamento interpessoal elegante e profissional, Conceição Coruche lembra: “Antigamente era obrigatório que qualquer funcionário que servisse cafés atrás do balcão tivesse a carteira profissional tirada na Escola de Hotelaria. Hoje, quem não tem emprego vai servir à mesa, não frequenta uma escola, deveria ter, pelo menos, um mínimo de conhecimento, umas noções.” Lembrada é uma das empregadas do início do hotel, a pasteleira Domingas, que vinha dos tempos do Café Tavares e vivia com os proprietários. “Fazia parte da família, viveu connosco uma vida inteira e acabou por morrer à entrada do hotel quando vinha trabalhar.” De salientar, também, os fabulosos bolos dos aniversários do hotel, preparados pelo “chef” Valentim, que até os fazia em jeito de maqueta do hotel.
Conceição Coruche e Afonso Coruche assumem-se como hoteleiros e não somente gestores: “o hoteleiro não vê apenas os números, mas tem o brio de querer fazer bem, de servir bem, com elegância e pormenor”, disseram. Mãe e filho complementam-se e vivem intensamente este desígnio. Conceição Coruche equilibra positivamente os sonhos de Afonso, reconhecido empreendedor e dotado de grande capacidade organizativa, onde nenhum pormenor fica ao acaso. Aliás, diretamente, pude constatar isso mesmo.
A conversa foi acompanhada pelos famosos rissóis do Hotel Baía, que, com certeza, também estiveram presentes na comemoração dos 60 anos desta unidade hoteleira, a 17 de abril de 2022, para a qual foram convidados atuais e antigos funcionários, bem como pessoas da hotelaria local.
O Hotel Baía dispõe de um total de 113 quartos de várias tipologias, incluindo quarto adaptado, tanto com vistas sobre a baía de Cascais (na frente), como para o centro da vila, com a serra de Sintra como pano de fundo. Se por um lado oferece a serenidade de um mar calmo, ladeado de praias solarengas e acompanhadas de um paredão com ciclovia e restaurantes com esplanadas, por outro, oferece o movimento e a animação do centro da vila, nos seus diversos restaurantes e bares movimentados. Ali não há lugar para a solidão.
Coube-me o quarto 407, que me deliciou pela notável vista sobre a baía e, também, com o aroma que o envolve. “We wish you a good night and sweet dreams!” – e assim foi, ainda por mais com esse aroma perfeito. Por gentileza do chefe de receção, Carlos Serrano, em nome da administração e respondendo à minha pergunta junto de uma das funcionárias de limpeza acerca da origem desse perfume, fez entregar no quarto um cartão personalizado onde se lê: “Na sequência da sua questão sobre o produto utilizado nos quartos como ambientador, deixamos alguns exemplares das fragrâncias utilizadas e abaixo a descrição do produto. Caso necessite de algum esclarecimento adicional não hesite em contactar-nos.” Uma gentileza que fica na memória, tal como a cortesia da administração pela presença de um prato elegantemente preenchido de frutas diversas e, também, de uma garrafa de vinho espumante branco bruto M&M Blossom proveniente da Bairrada.
Dos diferentes espaços do hotel, o Blue Bar é um espaço vibrante e sofisticado com uma nova carta de “cocktails” e “snacks” cuidadosamente elaborada. Situado no topo do edifício encontra a combinação perfeita de uma vista de sonho, uma envolvente atmosfera de maresia, uma oferta de serviços criteriosa e diversificada, um “staff” experiente e qualificado, DJ sets todas as sextas e sábados e uma decoração renovada. A piscina tem 1,20 metros de profundidade. Às quartas-feiras, há yoga das 8 às 9 horas da manhã para hóspedes sob instrução de Luna Wengorovius: “Não precisa de se preocupar com nada – fornecemos tapetes, toalhas, ‘bricks’ e água. Só precisa aparecer e aproveitar o momento!”, referido nas redes associadas ao hotel.
Em contrapartida, no piso térreo, a esplanada permanece aberta e apresenta novas ementas, tal como o restaurante. Nestes espaços, apreciei as refeições por cortesia da administração do hotel.
O pequeno-almoço é bem organizado, cujos marcadores individuais nas mesas reproduzem a pintura existente no mural da artista plástica anglo-portuguesa Jacqueline de Montaigne, que foi feito para perpetuar a história do hotel e reflete a beleza e o espírito de Cascais, integrando-se harmoniosamente no novo design. O trabalho de Jacqueline tem uma forte ênfase nas histórias através da simbologia onde a herança cultural é extensivamente explorada, além de trazer consciência para questões e desafios sociais locais. A natureza também tem uma forte presença em toda a obra do artista, trazendo uma calma etérea, onde a fauna e a flora escolhidas têm uma representação simbólica ou histórica específica do local.
No restaurante do hotel, saboreei um filete de robalo grelhado com puré de batata-doce e legumes, preparado pelo “chef” Diogo Fonseca e servido por Rui Oliveira e Sofia Botelho. O chefe de sala é João Fernandes, sempre atento aos pormenores. Todos providos de simpatia e profissionalismo dignos de nota. A acompanhar o prato principal, um vinho tinto José Piteira 2022 Alentejo (aragonez, moreto e trincadeira) de cor rubi carregado, notas de fruta preta madura e com um toque de especiarias. No domingo ao almoço experienciei o tradicional “brunch”, muito procurado, além dos hóspedes, por famílias locais.
Neste contacto direto com parte dos funcionários, captei o sentido de pertença à casa e uma excelente interação e organização. Note-se que, mesmo antes de chegar à receção no dia da chegada, o primeiro funcionário com quem me cruzei já sabia o meu nome e o objetivo da minha presença.
O Hotel Baía revela a sua nova imagem corporativa, que inclui um logotipo renovado. Este “rebranding” simboliza uma nova era de elegância e sofisticação, ficando a cargo da agência Digital Connection. O hotel voltou a ser galardoado pela Greenkey: “No nosso hotel preocupamo-nos com a nossa pegada ecológica e sabemos que os pequenos gestos fazem toda a diferença.” Por isso, todos os pormenores são importantes e merecem ser salientados.
Por curiosidade e não menos importante, este é o hotel que, semanalmente, tem a visita do presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, que, além de conhecer a família desde há longos anos, usa por vezes as instalações para trocar de indumentária depois de um refrescante e regenerador banho de mar ou para tomar um sumo e uma tosta mista ao almoço. Ele também é presença regular nas Festas do Mar, realizadas, anualmente, em frente ao hotel, cuja esplanada se ilumina com a vista exclusiva para o fogo de artificio. Quem se aloja, pode, facilmente, ver o presidente Marcelo Rebelo de Sousa e interagir com ele.
Haverá, no mundo, outro hotel com uma presença regular e informal do mais alto magistrado do país?
Este é um hotel familiar. O seu grande criador, João Soares, é recordado, com saudade, pela família: “Ele foi a origem dos nossos valores, o nosso mentor, a nossa força e o nosso apoio. (…) O fundador do Hotel Baía transformou um sonho num projeto, e esse projeto num ícone de Cascais – que continua atualmente nas mãos da mesma família”.
Face ao surgimento de grandes redes, a hotelaria familiar teve de se reinventar. O foco num bom relacionamento entre as pessoas envolvidas no sistema permite que o empreendimento se torne competitivo e diferenciado, pela sua qualidade e ambiências agradáveis. A eficiência de uma organização depende da inter-relação das pessoas, dos objetivos, da estrutura e da administração. O Hotel Baía é o exemplo da indústria hoteleira onde a qualidade dos recursos não-humanos e humanos são determinantes. Porém, com o mercado concorrente em crescimento, uma gestão profissional é crucial. Ações de baixo custo, como a boa organização estrutural, com cargos e atribuições bem definidos, podem criar oportunidades para que os interessados busquem crescimento de carreira profissional, através da dedicação, gerando motivação e comprometimento (como o encontrado nas grandes redes hoteleiras) e, consequentemente, a realização do serviço com qualidade. Para isso, a cultura de oferecer a educação, a formação e o treinamento adequado é essencial, direcionando todos para um trabalho focado no cliente. Dessa forma, os hotéis com gestão familiar podem obter êxito mercadológico. Uma eficiente gestão das pessoas é mais do que a busca de manter a organização presente num mercado que está sempre em constante mudança.
O Hotel Baía existe para além do necessário e para tornar a empresa num local de labor agradável, onde as pessoas realizam o ato de servir por gosto e prazer, e não somente pela necessidade de trabalhar.
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*Jorge Mangorrinha é pós-doutorado em Turismo, doutorado em Urbanismo, mestre em História Regional e Local (especialização em Património) e licenciado em Arquitetura. Autor multifacetado recebeu o Prémio José de Figueiredo 2010 da Academia Nacional de Belas-Artes. Com experiência no planeamento turístico, em Portugal e no estrangeiro, exerceu, também, como gestor técnico na Parque Expo’98 e como presidente da Comissão Nacional do Centenário do Turismo em Portugal (1911-2011). Colabora com o TNews, tendo sido o autor da rubrica “A Biblioteca de Jorge Mangorrinha”, a que se seguiu “Há História no Hotel”.