POR UM AMOR ETERNO
Na margem esquerda do rio Mondego, em Coimbra, há um local que emana misticidade e o interesse pela descoberta. As fontes são testemunhos de amor e paixão. Conta-se que o príncipe D. Pedro, depois rei, e a fidalga galega Inês de Castro, primos, protagonizaram a mais bela história de amor de Portugal. Esta e outras heranças fazem místico este local classificado como Imóvel de Interesse Público. Findo o uso residencial, o edifício é aberto como unidade hoteleira de 5 estrelas e pertence a uma sociedade por quotas, na qual a herança familiar está representada. Já neste século, surge uma ala nova, com um centro de reuniões e um spa. Foi construído o anfiteatro Colina de Camões e restaurados os jardins doados à Fundação Inês de Castro. Membro da Small Luxury Hotels of the World, este é um dos espaços mais românticos de Portugal, com tempo para se desfrutar, puramente, do melhor da vida.
Sentadas à mesa da receção do spa, observam-me três terapeutas e uma estagiária. Todas se levantam à minha chegada. Suzete Lila adianta-se no acolhimento e pelos seus lábios soltam-se palavras de orgulho pelo funcionamento deste espaço do qual é a responsável direta. Ao seu lado, Beatriz Tostes irradia um sorriso que preenche o seu rosto. Mélina Caldeira tem nos seus olhos de água a essência daquele espaço. Mafalda Fernando revelaria umas mãos capazes de descobrir os males e regenerar o corpo e a alma, com uma massagem completa. Afinal, juntando os seus predicados, até apostaria que aquelas quatro funcionárias à minha frente podem personificar uma só, a própria Inês de Castro, mulher de múltiplos talentos e centro deste universo.
Durante a Idade Média, a propriedade pertencia a uma Ordem monástica, os monges da Santa Cruz, e o local era conhecido por Quinta do Pombal, situada a sul do Convento de Santa Clara. O pombal continua a ser um dos edifícios mais antigos, construído em 1314 e depois entregue à Rainha Santa Isabel, mulher do rei D. Diniz.
O primeiro documento conhecido que refere a propriedade data de 1326, ano em que Isabel de Aragão decidiu ampliar o convento e mandou fazer um canal para levar a água de duas nascentes. Uma delas é a chamada Fonte dos Amores, por ser o local de encontro de Pedro, neto da soberana, com Inês de Castro, rica fidalga galega que servia de dama de companhia a D. Constança, mulher de Pedro e futura rainha de Portugal. A outra fonte, ligeiramente mais distante da primeira em relação ao convento, foi denominada Fonte das Lágrimas, por Luís de Camões, referindo que a mesma nascera das lágrimas vertidas por Inês ao ser assassinada a mando do pai de Pedro, Afonso IV de Portugal.
Para entrar neste lugar mágico e simbólico, o portão, de acesso limitado, abre-se a uma alameda que culmina na escadaria de dois lanços de acesso ao edifício principal. A fachada é encimada por frontão com pedra de armas. No topo da ala direita, encontra-se uma capela com pequeno adro. Entre este e a referida escadaria, há um pequeno jardim, com sebes de buxo talhadas, centrado num elemento de água, oferecendo-se como cenário para quem deambula pela pérgola, lateralmente à capela, por um caminho que permite o acesso ao jardim histórico.
Este jardim apresenta duas partes distintas, uma primeira em que a cobertura arbórea se apresenta bastante densa e onde ao nível do estrato arbustivo se desenham sebes de buxo talhadas em canteiros geométricos, enquadrados por elementos de água; uma segunda apresenta um relvado iluminado por uma clareira, pontuado por espécies de porte arbóreo e arbustivo, tal como uma cortina de bambus, que nos separa de um outro patamar, onde foi instalada uma plantação de oliveiras e onde a modelação do terreno permite que este espaço se isole visualmente do exterior.
Sigo até à monumental Figueira dos Amores, eleita a Árvore do Ano 2025, por votação pública. Há cerca de 150 anos, foi plantada por um aristocrata colecionador de árvores, fruto de trocas de sementes com o Jardim Botânico de Sydney. Esta espécie pode atingir mais de 60 metros de altura e possuir um tronco largo com raízes enormes, mesmo proeminentes, como esta em que me encontro. Os seus frutos são mais pequenos do que os de uma figueira normal.
Esta é uma área verde que ocupa 18,3 hectares e um dos mais completos jardins botânicos de Portugal, com três núcleos: o jardim romântico, o jardim medieval e a mata. Inclui um extenso e cuidado campo de golfe, onde outrora eram campos de cultivo. Em 2006, a arquiteta paisagista Cristina Castel-Branco iniciou uma remodelação dos jardins, a qual incluiu a interpretação do jardim medieval, junto ao Cano dos Amores e o anfiteatro Colina de Camões (Prémio de Arquitetura Paisagista 2008) para servir de cenário a um festival de música ao ar livre que acontece todos os anos no verão. Em 2007, foi construído um jardim japonês num claustro do hotel. Todos esses elementos vieram trazer nova vida e mais beleza a um espaço com sete séculos de história, no qual as fontes podem ser vistas nos seus lugares originais e apreciadas como componentes autênticos e íntegros de um jardim vivido e visitado por milhares de pessoas durante séculos, nas palavras da Associação Portuguesa dos Jardins Históricos.
A Quinta das Lágrimas entrou para a família dos atuais proprietários, em 1730, o que originou a construção do palacete. Resta dessa primeira construção a parte de trás, virada para o pombal. Por altura do conflito entre franceses e ingleses no início do século XIX, o duque de Wellington, Arthur Wellesley, ficou hospedado na Quinta das Lágrimas, cujo proprietário, António Maria Osório Cabral de Castro, era seu ajudante-de-campo. Wellington mandou plantar, na ocasião, duas sequoias perto da Fonte dos Amores. Por volta de 1850, Miguel Osório Cabral de Castro, filho de António de Castro, mandou construir o frondoso jardim românico, com lagos serpenteantes e espécies vegetais exóticas de vários lugares do mundo, numa espécie de museu vegetal. Duarte de Alarcão Velasquez Sarmento Osório fez construir, junto à entrada da mina mandada fazer pela Rainha Santa, uma porta em arco e uma janela neogótica, que dão acesso à mata. O século XIX testemunhou várias visitas reais, como a de D. Miguel de Portugal e a do Imperador do Brasil, D. Pedro II, que, em 1872, foi recebido na Quinta das Lágrimas. Sete anos depois (1879), um incêndio destrói o edifício, sendo reconstruído ao estilo dos antigos solares rurais portugueses, com biblioteca e capela, edifício de arquitetura civil, revivalista, composto por corpo central organizado à volta de um pátio e intersetado por duas alas, tendo cada uma, em frente, uma galeria de colunelos quadrados.
No “foyer”, existem simbologias pictóricas e escultórias. Em forma de corpo de Inês de Castro, um trabalho contemporâneo da artista Alexandra Oliveira recria a imagética da protagonista desta história de paixão: “Como que a pairar, contornando um canteiro em direção à fonte, um vestido a quem lhe foi arrancado o corpo. Feito de ouro de folhagens que de tanto vaguear pelos jardins se foram acumulando, representa uma presença constante de Inês, que se sente e se imagina passear, quando se visita a Quinta das Lágrimas. Em tamanho real é um vestido da época, que ficara com as formas como que se um corpo permanecesse dentro.” (Alexandra Oliveira, “Permanece”, 2008)
Na receção, a simpatia no “check-in” antecipa toda a gentileza recebida na estada de três dias neste hotel, dos porteiros e bagageiros Jaime Baptista, João Alves e Ricardo Roma aos rececionistas Diogo Figueiredo, Sílvia Almeida e Tânia Sabino. Com Carlos Romão, diretor de alojamento, fiz uma visita ao hotel, aberto como Hotel de Charme, membro da Relais & Châteaux. Em 2004, com projeto do arquiteto Gonçalo Byrne, foi construída uma ala mais moderna, com quartos, spa e salas de reunião. Em todo o hotel, há 55 quartos de diferentes estilos e distribuídos por três alas: palácio, jardim e ala nova. Une-os uma alcatifa em desenho abstrato, lembrando as sombras das folhas projetadas no chão.
Nesta experiência, coube-me o número 7, ou “Suíte do Rei”, dado que era nela que D. Carlos pernoitava. Nesta suíte emblemática, alojaram-se, também, o duque de Wellington e, antes e depois de o edifício ser transformado em hotel, muitos chefes de Estado estrangeiros, como a presidente brasileira Dilma Russeff, confirmado no “Livro de Ouro”, e outros políticos e gente famosa, como o luxemburguês Jean-Claude Junkers, presidente da Comissão Europeia. Mais adiante, sem fazer menção, o número 9 é o de Amália Rodrigues, onde a fadista ficava quando se deslocava a Coimbra. Há, ainda, o chamado Quarto de Maternidade, onde nasceram todas as crianças da família através dos tempos.
Ao percorrer o interior do edifício, entre a parte antiga e o corpo novo, encontro um corredor do tempo, porque é pleno de arte, inspirado no amor eterno entre Pedro e Inês. A biblioteca é uma pequena sala totalmente revestida de estantes de madeira com um pé direito acompanhando os dois pisos e uma galeria ao nível do segundo, circundando todo o espaço e com escada oculta, as paredes têm ângulos côncavos forradas a madeira, aberturas em vãos retangulares com moldura boleada, pavimentos com desenho artístico, teto trabalhado e claraboia decorada. Contígua à biblioteca, a capela é composta por uma nave única, com tribuna, dois altares colaterais encimados por sanefas, a capela-mor é separada da nave por arco triunfal de volta plena assente em pilastras, aberta por duas portas, uma com acesso à área residencial e outra a uma pequena arrumação.
Se o hotel tem na sua biblioteca um dos componentes de promoção da leitura e na capela um lugar de recolhimento espiritual, as iguarias para degustar são um dos expoentes desta oferta hoteleira, que já teve uma Estrela Michelin, através do “chef” Albano, que já não se encontra, porém, mantém-se a recomendação deste hotel no Guia Michelin.
O Arcadas é o restaurante de cozinha de autor, liderado pelo “chef” Vítor Dias. Ele inspira-se nas tradições gastronómicas da Quinta das Lágrimas e desta região, criando pratos que honram este património. A nova carta oferece três menus fixos e uma opção “à la carte”, prometendo-se uma experiência gastronómica sofisticada. No Arcadas, considerado um dos 500 melhores do mundo pela “Le Liste”, a carta promete uma verdadeira celebração dos produtos regionais e sazonais. A aposta é a raça bovina Marinhoa, originária da região, que beneficia das ricas pastagens naturais e produz uma carne suculenta de características únicas. A parceria com a Quinta dos Sardões, em Cantanhede, assegura vegetais biológicos diários. A tradição conventual de Coimbra, com doces e pastéis, inspira as sobremesas.
A minha experiência gastronómica, sempre numa mesa amavelmente prevista com vista para o jardim, passou por duas refeições principais, além dos pequenos-almoços, simpaticamente servidos pela Bruna Santos, de rasgado sorriso.
A primeira refeição principal decorreu no Restaurante Gastro Bar, na sala que já foi a loja do hotel e o “Mais Pequeno Restaurante do Mundo”, quando apenas existia uma mesa e duas cadeiras ao centro, muito procurado pela sua singularidade. Fui obsequiado à entrada por Ana Infante e servido por Silvéria Silva e Augusto Silva, barman de primeira classe e que, desde logo, preparou um Porto Tónico para começar e com quem tive a oportunidade de conversar sobre passagens dos seus anos neste hotel. O prato principal foi um bife de atum à Portuguesa. De notar, o ambiente tranquilo atravessado por uma luz suave e decoração moderna, com um apontamento clássico de um notável aparador antigo. Na estante, junto da minha mesa, “Adoecer”, de Hélia Correia, e “Analogia e Dedos”, de Pedro Tamen, são títulos que sossegam ali bem perto e dos quais leio passagens.
A segunda refeição decorreu no Arcadas, com uma cozinha que utiliza os produtos tradicionais desta região para criar receitas de sabor. Ervas aromáticas do jardim de cheiros, laranjas, limões e abacates do pomar e framboesas e agriões selvagens que crescem em estado puro. Por mim escolhido, até pela forma e pelos rótulos expressivos, o azeite Prior Lucas, de Souselas, vem dos olivais centenários em redor das vinhas da mesma propriedade e condimentam o pão saboroso. Nos vinhos, a escolha foi difícil, porque estamos a dois passos de duas das mais importantes regiões vinícolas de Portugal, Dão e Bairrada. Felizmente, fui ajudado na escolha.
A começar, Casa do Canto Bairrada 2021 Bruto Reserva Branco, a acompanhar as boas-vindas do “chef”. Seguiu-se Pedro & Inês Dão Branco 2022, o tributo da casa “a um amor puro que irá durar até ao fim do mundo”, a acompanhar o estufado de cogumelos e migas de triga-milha com chouriço serrano picante, e o São João Lote Especial Bairrada Tinto 2020, a acompanhar o bacalhau confitado, com “tremoçada” de samos, couve portuguesa, emulsão de coco e lima. Por fim, Marquês de Marialva Singular Vinho Licoroso Bairrada 2017 a acompanhar a sobremesa.
O hotel tem uma notável coleção de vinhos, alguns dos melhores néctares das vinhas de Portugal e do mundo, sendo a maior joia o vinho de assinatura Pedro & Inês, concebido com duas castas tradicionais desta região, uma mais rústica e masculina (Alfrocheiro-Pedro), outra mais perfumada e feminina (Touriga Nacional-Inês). A união das duas criou um vinho histórico. Como se torna costume, não deixarei de nomear quem, simpaticamente, me serviu as iguarias: André Neves, Daniela Simões, Fábio Carvalho, Francisco Valente, Luís Sousa e Pedro Bastos, a quem desejo caminhos de sucesso.
A infusão personalizada Pedro & Inês veio acalmar o estômago para o resto da noite, bebido e acompanhado de um tradicional pastel de Tentúgal, que também fizera parte do mimo de boas-vindas no quarto acompanhado de Licor Beirão. Na sala de estar, há um velho piano alemão Baumgarten & Heins, datado de meados do século XIX, igual a um outro existente no Museu de Brahms, em Hamburgo. O piano já não toca, mas a seleção musical e de ambiente perpassa pelos espaços e adequa-se muito bem às características deste hotel. Isto, antes de um duche perfumado pela linha de cosmética e de banho da Real Saboaria para um descanso retemperador.
A noite fica serena e as lágrimas vertem-se em chuva por estes dias.
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