Quem passa não passa sem lá voltar
Por Jorge Mangorrinha
Inscrito na lista do Património da Humanidade, o Mosteiro de Alcobaça ganhou uma nova vida desde 19 de novembro de 2022, com a inauguração do sétimo hotel do grupo Visabeira. O Montebelo Mosteiro de Alcobaça Historic Hotel resultou do contrato público de concessão por 50 anos das alas do Claustro do Rachadouro. A cadeia Montebelo Hotels & Resorts tem atualmente oito investimentos hoteleiros em Portugal e seis em Moçambique, que representam cerca de 4% do volume de negócios do grupo empresarial. António Machado Matos é o diretor geral, que trabalha em escritório aberto junto da receção para ver quem chega e estar na hora certa no momento certo. Sempre prestável desde o momento do “check-in” até à despedida, incluindo a presença no primeiro dos jantares de cortesia, selou com espumante Casa da Ínsua (Dão) o início de uma convivência salutar durante a estada neste hotel, onde se respira uma atmosfera histórica e uma contemporaneidade exemplar. “Quem passa por Alcobaça não passa sem lá voltar” nunca foi um lema tão apropriado e atual.
Nos “Opúsculos” de Alexandre Herculano (vol. I, 1873), o escritor reconhece que os monumentos se convertem em capital produtivo, “quando a arte ou os factos históricos os tornam recomendáveis”, referindo-se ao Mosteiro de Alcobaça e a outras “obras-primas de arquitetura que encerra este cantinho do mundo”.
Esse capital produtivo foi a aposta do promotor na renovação parcial da obra-mestra da arquitetura cisterciense. Em 2015, a Visabeira Turismo candidatou-se ao concurso lançado, em maio desse ano, pelo Governo para a construção de um hotel no Claustro do Rachadouro do Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, erguido para albergar as oficinas, o arquivo e a biblioteca e onde depois funcionaram os Paços do Concelho, o Tribunal, uma Escola e um Asilo. Um ano depois do concurso foi assinado o contrato de concessão. A construção efetiva do hotel começou em abril de 2018, após a realização dos trabalhos de sondagens sob coordenação da Edivisa, acompanhados pela Direção Geral do Património Cultural.
Com o traço do arquiteto Eduardo Souto Moura, o Montebelo Mosteiro de Alcobaça Historic Hotel eleva a estada a um patamar de excelência na relação entre a história e a contemporaneidade. O conceito foi inspirado no minimalismo e no espírito emanado da tradição monasterial e, ao mesmo tempo, no respeito pela espacialidade original dos extensos corredores ou das antigas celas e dos antigos escritórios, devolvendo a luz e as linhas originais do edifício e a sua magnificência. O resultado da transformação conseguiu destacar o virtuosismo e a qualidade de materiais nobres, tais como a pedra, a madeira, as peles, o aço, o betão e o vidro, em perfeita união com as seculares raízes do edifício. Este é um exemplo de como é possível articular os interesses público e privado. O hotel foi inaugurado pelo Presidente da República Portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa, e pelo Presidente da República de Moçambique, Filipe Jacinto Nyusi.
Sem surpresa, esta unidade de 5 estrelas foi, entretanto, distinguida com o Prémio Reabilitação do concurso Prémio Nacional do Imobiliário 2023, conhecido como os “Óscares do Imobiliário”. O prémio destaca a qualidade do projeto de requalificação.
Ali respira-se o cheiro das madeiras novas em todos os corredores que nos levam aos 91 quartos, individuais e duplos, quartos familiares, suítes e master suíte, bem como aos espaços para congressos, banquetes e reuniões, de que é exemplo a antiga biblioteca, e ainda o restaurante e a sala dos pequenos-almoços. Deixamo-nos perder por esses extensos corredores, que têm uma galeria de fotografias com “o antes e o depois”, permitindo-nos aferir a importância da intervenção arquitetónica. Espaçadamente junto a algumas janelas, há mesas e cadeiras para conversação ou leitura. Não há quadros nas paredes, o vazio é elemento decorativo e o mobiliário corresponde à simplicidade pretendida para homenagear o edifício. Até os cilindros metálicos, colocados ao longo do chão, têm um desenho interessante e integrador, cuja função é dispersar o calor, mantendo assim os espaços sempre confortáveis. Há cadeiras desenhadas por um outro arquiteto estrelado, Álvaro Siza Vieira, e os candeeiros nos corredores e as cadeiras no bar também são da sua autoria. Há uma acústica natural propícia à meditação, ao pensamento, à reflexão e à escrita, pensada há séculos e recuperada por Souto Moura.
E há pessoas.
A Mariana e o Fidel receberam-nos nos jantares com a sua simplicidade e atenção. O “chef” Bruno Mendes é digno de estrela Michelin. Com a Vânia estamos em boas mãos pela massagem terapêutica ou relaxante. A assistente da direção Joana Lisboa Vitorino conduziu-nos numa visita pormenorizada pelos espaços do hotel. O Emanuel Batista ofereceu o seu sorriso à chegada e à partida na receção. Estes nomes fazem parte da equipa que é o cerne de um hotel dirigido por António Machado Matos, afável, próximo, competente, aliás, características essenciais para uma boa gestão de recursos humanos e para acompanhar o desenvolvimento e a motivação dos trabalhadores, bem como os objetivos e a cultura organizacional, sabendo-se como, neste setor, existe uma constante procura e mudança nos hábitos dos clientes, exigindo-se mais qualidade e competência nos serviços propostos.
O quarto desta estada foi o número 100, com vista para o Jardim do Obelisco. A casa de banho está integrada no espaço por uma caixa de madeira de tons claros que também são os do mobiliário e da cama, desenhados por Souto Moura, sendo que esta solução se repete em quase todos os quartos: duche, banheira para um banho mais relaxado e um lavatório com um espelho largo. O quarto que me coube está localizado sob a referida antiga biblioteca, no piso imediatamente abaixo. Neste grande espaço, são notáveis os mármores decorativos e os frescos, a que se acrescenta a profusão de luz. Descansar ou escrever no quarto sob um antigo espaço de conhecimento é absolutamente inspirador. Por cortesia do seu diretor, à chegada houve fruta, doces da região e uma ginja de Alcobaça, a melhor do país. O carrinho de mão desenhado pelo arquiteto é tão simples e belo que apetece ter um igual em casa. Todo o mobiliário está marcado com a assinatura do seu criador.
Começam os dias com um pequeno-almoço digno da grandeza deste espaço arquitetónico e hoteleiro. À mesa, junto de uma das janelas com vista para o Jardim do Obelisco, confrontei-me com a presença próxima da capela de Nossa Senhora do Desterro, inicialmente seiscentista, localizada do lado Sul do Mosteiro, no topo de uma pequena elevação de terreno, rodeada de um adro com dois acessos, animada no exterior pelo barroquismo do portal e dos remates dos cunhais.
As experiências patrimoniais são uma constante, e talvez uma das mais surpreendentes seja a emersão do corpo na piscina localizada numa sala cujos pilares centrais de pedra maciça se encontram no meio da água, onde antes era a cavalariça dos monges. Na sala imediatamente antes da piscina, existem módulos de cabinas, que são umas caixas de madeira, para banho turco e massagens, bem como uma sala de ginásio com máquinas. As mãos da terapeuta foram essenciais para me atenuar as dores da civilização, sob uma luz ténue e um som relaxante. Até apetece ficar para sempre naquele ambiente de recolhimento.
No fim desta experiência de três dias e duas noites num espaço secular onde antes tantos o percorreram numa vida intimista, é propício refletir sobre a vida e o papel de cada um neste mundo. As paredes pesadas do passado talvez nos ensinem o caminho do futuro. Misteriosamente, o elevador da receção desce, por vezes, sem que tenha utentes. Há quem diga que os monges ainda andam por lá, metamorfoseados no ar que se respira e sussurrando-nos aos ouvidos.
A Ordem de Cister acompanhou a formação do território e a afirmação política da primeira dinastia portuguesa. Estendendo progressivamente os seus mosteiros graças à especial proteção régia, os monges brancos contribuíram de forma decisiva para a colonização e o desenvolvimento das vastas áreas que ocuparam, aplicando técnicas agrícolas inovadoras e intensivas e, sobretudo, uma grande disciplina de organização do espaço. É esta organização que foi respeitada no projeto de reconversão para hotel de parte do Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, que desde 1153 passou a ser a casa-mãe da Ordem em Portugal. Obra maior do primeiro gótico nacional, conserva daquela época o edifício da igreja, de três naves, deambulatório e capelas radiantes, o dormitório, o refeitório e o Claustro D. Dinis. Sucessivamente alterado e ampliado com especial incidência nos séculos XVI e XVII quando se construíram novos claustros e se barroquizou a frontaria, o complexo tornou-se num conjunto monumental que constitui o mais importante dos testemunhos cistercienses em toda a Europa, classificado como Monumento Nacional desde 1910 e integrante da Lista do Património Mundial da UNESCO desde dezembro de 1989. No século XVII, houve a necessidade de construir o Claustro do Rachadouro, devido à falta de espaço no Mosteiro. A sua construção durou até ao século XVIII, terminando com a construção da biblioteca, que continha uma das maiores coleções de Portugal até ao seu saque pela extinção das ordens religiosas, em 1834, e a posterior transferência do restante para a Biblioteca Nacional.
A intervenção para hotel contribuiu para reforçar a integridade do complexo e para transmitir o seu valor universal excecional. Este hotel oferece, portanto, o melhor da nossa cultura patrimonial, com todo o conforto e requinte, em espaços repletos de história, que convidam à descoberta e a uma visita inesquecível à cidade cisterciense.
O hotel devolveu o Mosteiro ao Mosteiro, com as comodidades do nosso tempo, numa parceria exemplar entre a iniciativa privada e o Estado. Além da reabilitação do património histórico, significou a criação de emprego e de riqueza para Alcobaça, bem como a possibilidade de vivenciar o património para aproximar as pessoas da História, conhecê-la e orgulharmo-nos dela.
Quem passa por Alcobaça não passa sem lá voltar… e ficar.
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*Jorge Mangorrinha é pós-doutorado em Turismo, doutorado em Urbanismo, mestre em História Regional e Local (especialização em Património) e licenciado em Arquitetura. Autor multifacetado recebeu o Prémio José de Figueiredo 2010 da Academia Nacional de Belas-Artes. Com experiência no planeamento turístico, em Portugal e no estrangeiro, exerceu, também, como gestor técnico na Parque Expo’98 e como presidente da Comissão Nacional do Centenário do Turismo em Portugal (1911-2011). Colabora com o TNews, tendo sido o autor da rubrica “A Biblioteca de Jorge Mangorrinha”, a que se segue “Há História no Hotel” durante 12 crónicas.