Por Jorge Mangorrinha
Essa é que é Eça
A dois passos da ria de Aveiro, o número 50 da Rua José Estêvão é um edifício em cor-de-rosa pálido, com brasão, varanda em ferro e janelas altas debruadas a pedra. Ao entrarmos no interior, o nosso olhar abre-se ao rendilhado floral do teto, à sala de leitura e à escadaria sumptuosa, cujas madeiras e corrimãos são originais. Há histórias que emanam desta casa, que é o primeiro hotel de 5 estrelas da cidade e foi outrora residência do pai e de familiares do escritor e diplomata Eça de Queiroz. Esta circunstância inspirou o conceito e a decoração. Os pormenores originais, os tetos em caixotão, os lustres brilhantes, os pisos em parqué polido, as cortinas luxuosas e a mistura de elementos modernos e clássicos revelam-se aos clientes e a esta cidade de pitorescos canais e elegantes casas nobres à beira-mar.
“Sinta-se inspirado”, a frase que está em cada folha do bloco de notas que me foi oferecido no “check-in” feito por Juliana Rocha, estagiária com licenciatura obtida em Aveiro. “A beleza exterior alegra os olhos, porém a beleza interior faz com que o coração bata mais rápido” (Eça de Queiroz) é o que lemos no cartão que envolve a chave do quarto, como mote para uma estada verdadeiramente inesquecível. Na mesma altura, foram oferecidos marcadores de livros com raminho de flores secas e laço, com frases de Eça de Queiroz.
O MS Group – empresa que detém os hotéis Moon & Sun, no Porto e em Braga – continua a expandir a sua atividade no setor do turismo com a abertura, em Aveiro, da sua primeira unidade hoteleira de 5 estrelas, representando o segmento hoteleiro de luxo. O MS Collection Aveiro – Palacete de Valdemouro nasceu de um sonho antigo do grupo liderado por Pedro Mesquita Sousa para investir em projetos únicos em Portugal, nascendo já com a marca Small Luxury. Esta aposta espelha, simultaneamente, a preocupação na reabilitação e revitalização de património histórico, prestando homenagem à herança cultural de Aveiro. Neste sentido, pretendeu-se devolver a alma de residência nobre a uma das mais conceituadas casas da cidade.
O hotel combina história, elegância, conforto e qualidade, atributos que definem os seus quartos e os restantes espaços, nomeadamente, o restaurante, a piscina exterior, o SPA e o ginásio. Todo o conceito e a decoração são inspirados na vida e obra de Eça de Queiroz e, por isso, também refletem muitas características dos hotéis franceses do século XIX, país onde residiu até ao fim dos seus dias.
Estar nos locais relacionados com escritores é um dos motivos que movem os turistas literários. Estabelece-se uma ligação emocional entre o leitor, o escritor e os personagens, o que faz com que os locais e destinos literários sejam atraentes para os turistas. Esta unidade hoteleira de Aveiro não se insere numa das moradas de Eça de Queiroz, mas no local de residência de familiares do escritor, permitindo que os hóspedes tenham experiências autênticas, que passam muito ao lado de simples adereços, numa casa que é mais do que um hotel. O turismo literário pode combater de forma determinante a sazonalidade associada a outros tipos de turismo, já que o turista não se desloca apenas numa época do ano, as suas estadas podem, muitas vezes, realizar-se em fins-de-semana. Ao referenciar-se os escritores nos quartos e recriando a época associada, esta unidade hoteleira está apta a captar este segmento turístico que inicia a sua experiência no próprio hotel, para além de aproveitar os eventos realizados no território envolvente.
Na hora do “check-in”, Seiva, o bagageiro com origens norte-americana e russa, levou as malas para o quarto, envergando uma indumentária à época da origem da casa, incluindo chapéu de coco com abas largas. No final, mostrou-se disponível para uma foto de recordação capturada à entrada do hotel, e disse: “A minha função é manter o sorriso nos clientes”.
Com todas estas atenções, iniciámos a estada neste hotel com uma visita dirigida por João Carvalho, o diretor-geral sempre solícito, tal como foi Helena Valente, diretora de marketing e desenvolvimento de negócios, na troca de informações escritas.
O projeto de reabilitação tem a autoria do arquiteto Rui Dinis e teve como premissa manter e preservar as características originais do edifício. Foram mantidas a fachada brasonada e a estrutura original composta por dois pisos, pelo “hall” e por uma escadaria de madeira, realçando-se, também, os tetos decorados em estuque com motivos florais. Dois desses tetos foram completamente restaurados de acordo com os originais por um especialista de Gondomar. De notar, ainda, um conjunto de apliques Art Déco, com diferentes desenhos, que dão luz suave aos espaços.
O hotel disponibiliza 39 quartos de diferentes tipologias, divididos em três categorias: quartos clássicos, temáticos e de assinatura, a par de um ambiente de extrema elegância e absoluto conforto. Cada quarto temático tem a particularidade de ser único, inspirado numa das personagens queirosianas: Carlos da Maia, Maria Eduarda, Primo Basílio, Padre Amaro, Artur Covelo, Gonçalo Ramires, Jacinto Tormes, Luísa de Brito, Afonso da Maia ou João da Ega. Coube-me o quarto 103, o mais nobre (Palacete Premium), ao cimo da escadaria e com a varanda central da fachada. Este quarto recebeu o nome de Carlos da Maia, um dos personagens principais do romance “Os Maias”, amante da ciência e das mulheres, diletante, visto que exercia a sua profissão pelo prazer e não por obrigação. Durante a estada, dormi “a noite de um sono são, contínuo, e todas as agitações, as impaciências dos dias passadas pareciam ter-se dissipado naquele repouso” (“O Primo Basílio”), tal como estava escrito no cartão de boas-vindas assinado por Marlen Robles, pertencente à equipa de “housekeeping”, com a função de efetuar o serviço de “turndown”.
Os livros, bem como alguns objetos pessoais do escritor renovados de seis em seis meses em parceria com a Fundação Eça de Queiroz, estão na sala de leitura, onde também se encontra o busto do escritor concebido pelo caricaturista António, propositadamente para o efeito.
As manhãs no Palacete de Valdemouro começam sempre com um despertar dos sentidos nos pequenos-almoços, onde saboreei uma das mais deliciosas omeletas da minha vida. A acompanhar o café, há saquinhos de açúcar personalizados com as seguintes mensagens: “Somos todos feitos de História”, “Fascine-se com a História”, “Encante-se com a arquitetura”, “A elegância está nos detalhes” e “Apaixone-se pelo conforto”.
O Prosa é o restaurante que se distingue por recriar uma envolvente atmosfera de charme à imagem da época de Eça de Queiroz e com o impulso criativo do “chef” estrelado Rui Paula, que se distingue por integrar produtos da região na comida de conforto e nos pratos clássicos, assim como se resgatam memórias antigas com muito sabor. De notar o pormenor no uso de luvas por parte dos empregados de mesa, que deveria ser obrigatório em qualquer unidade hoteleira, porém, é rara opção, mas que este hotel cumpre.
O “chef” executivo é João Covas, que preparou uma escolha específica para o jantar de cortesia, incluindo a impressão da ementa para oferta assinada por Rui Paula. Ricardo Soares é o diretor do restaurante e Beatriz, Gabriela, Inês e João Fernandes serviram o jantar com esmero e simpatia. O jantar incluiu quatro momentos absolutamente únicos: espetada de lula com gamba de Quarteira e trilogia de pimentos; caldeirada com seleção de peixes frescos, lavagante e molho de caldeirada; cachaço de porco bísaro, aipo em texturas e molho de sidra; e, por fim, brisa do Liz, ovos moles, gelado de canela e gel de hortelã. A acompanhar, fui obsequiado com uma seleção de vinhos. A iniciar, o vinho verde Casa de Compostela da casta Loureiro 2022, de perfil elegante e delicado no aroma com notas florais e frutadas. Seguiu-se o branco Ortigão Chardonnay da região da Bairrada 2021, de cor amarelada e laivos de limão, com notas de frutos tropicais e refinada frescura de muita precisão. E, para finalizar, o tinto Dinâmica de Filipa Pato & William Wouters da região da Bairrada 2022, com leve cor cereja e boa viscosidade, frutado com o típico toque de morango e ameixa, com nuances de alcaçuz, ligeiramente picante. Concluindo o repasto, uma infusão Montanhas de Sensações (erva-cidreira, urze e prunela) da marca Infusões com História – The Green Portuguese Heritage. O jantar foi uma verdadeira composição, em prosa e poesia, dos sabores da região aveirense.
As heranças também se expressam no Moments Spa, onde se usufrui da piscina interior de água aquecida sob teto de vidro que é o chão da piscina exterior, e ainda com acesso ao jacuzzi, à sauna, ao banho turco e ao duche sensorial, bem como aos rituais de esfoliação e às massagens, concluindo-se com a degustação de chás “gourmet”. A piscina exterior fica no logradouro transformado em jardim e zona de extensão da sala dos pequenos-almoços e dos quartos do rés-do-chão que têm cada qual uma pequena varanda. Numa das paredes deste jardim, existe o mural “Scratching the Surface – Eça”, criado por Vhils (Alexandre Farto), reforçando a imagética dedicada ao escritor.
O Palacete de Valdemouro é um dos mais requintados edifícios da cidade e é essa experiência de sofisticação e qualidade que é oferecida aos hóspedes. Com uma inspiração em 150 anos de história e na vida de Eça de Queiroz, recria-se um ambiente de charme, enriquecido por um serviço de excelência, personalizado e sempre atento ao pormenor, para tornar cada estada inesquecível.
Como diria Paul Theroux, um dos maiores nomes da literatura de viagens: “quem sabe o que é ser viajante, jamais se contentará em ver o mundo como turista”. Para ele, o melhor é sentir as emoções mais autênticas. Hotéis que servem apenas para dormir já deixaram de ser o principal objetivo de muitos viajantes. Um novo perfil busca, acima de tudo, viver experiências significativas. Um conceito moderno de turismo oferece outro tipo de relação com o local visitado. Esse novo tipo de abordagem é uma excelente oportunidade para hotéis e restaurantes destinados a receber turistas. Tudo pode ser planeado, pensando na experiência final do visitante, basta valorizar a riqueza da cultura local e explorar os recursos tecnológicos disponíveis para proporcionar experiências. Afinal, quanto mais intenso for o envolvimento do ambiente com o turista, mais forte será a lembrança, mais marcante será cada momento e maiores são as chances de que o viajante volte e faça boas recomendações.
Existe uma grande diferença entre uma viagem apenas para se lembrar e outra para nunca mais se esquecer. É o caso desta estada no MS Collection Aveiro – Palacete de Valdemouro.
*Jorge Mangorrinha é pós-doutorado em Turismo, doutorado em Urbanismo, mestre em História Regional e Local (especialização em Património) e licenciado em Arquitetura. Autor multifacetado recebeu o Prémio José de Figueiredo 2010 da Academia Nacional de Belas-Artes. Com experiência no planeamento turístico, em Portugal e no estrangeiro, exerceu, também, como gestor técnico na Parque Expo’98 e como presidente da Comissão Nacional do Centenário do Turismo em Portugal (1911-2011). Colabora com o TNews, tendo sido o autor da rubrica “A Biblioteca de Jorge Mangorrinha”, a que se segue “Há História no Hotel” durante 12 crónicas.