“Em todo o livro há uma viagem”
2. A Volta ao Mundo em 80 Dias (Júlio Verne, 1873)*
Desde a data em que escrevo estas palavras até ao final do corrente ano falta sensivelmente o mesmo número de dias do título do livro por mim escolhido e imaginado, há 150 anos, pelo francês Jules Verne, que é considerado, por críticos literários, o inventor do género de ficção científica, tendo feito prenúncios sobre o aparecimento de novos avanços científicos, como os submarinos, as máquinas voadoras, a ida à Lua e a volta ao mundo. Sempre a viagem em presença.
O protagonista deste livro não é francês, mas é o inglês Phileas Fogg, metódico, enigmático e galã, que viaja com o seu novo mordomo, o francês Jean Passepartout, e parte prontamente após um acordo com o seu grupo de amigos, depois de ler em The Daily Telegraph que uma nova ferrovia na Índia tornaria teoricamente possível viajar ao redor do mundo em 80 dias. Fogg aposta com os seus companheiros do Reform Club que fará essa viagem nesse período. A aposta é de 20.000 libras esterlinas (metade de sua fortuna). E parte de imediato.
O traço da aventura louca é uma sucessão de incidentes, desde logo o que faz de Fogg o principal suspeito do roubo do Banco de Inglaterra dias antes de partir, o que leva à perseguição feita pelo Detetive Fix, inspetor de polícia britânico, a partir do Suez, no Egito governado pelos britânicos, onde aguarda o vapor Mongólia, no qual Fogg e Passepartout viajam.
A rota intercontinental inclui Londres, Paris, Brindisi, Suez, Bombaim, Calcutá, Singapura, Hong Kong, Yokohama, São Francisco, Nova Iorque, Liverpool e o regresso a Londres. Há um século e meio, utilizavam-se os meios de transporte possíveis, desde paquetes, comboios e elefantes.
A corrida contra o tempo previamente estabelecido, a que assistimos na vibrante descrição e leitura dos acontecimentos, permite dar o perfil do cidadão inglês da época, pontual e reservado, bem como a capacidade e a criatividade de ultrapassar os problemas. Talvez, um ensinamento para este nosso tempo presente, em que, de novo, temos de superar as contingências de uma pandemia que afeta as viagens e o turismo, com as devidas distâncias.
Leio partes fascinantes, em que se dá a conhecer as diferenças sociais, territoriais e arquitetónicas entre os destinos visitados, bem como a imaginação fértil do autor.
No regresso, assim que chegam a Liverpool, Fix prende Fogg, mas algumas horas depois sabe-se que foi outro o homem responsável pelo assalto. Fogg é libertado e segue num comboio especial. No entanto, pensa ter chegado a Londres tarde demais (5 minutos) para ganhar a aposta. Estamos a 21 de Dezembro de 1872. Na noite seguinte, por pensar ter perdido, Fogg pede desculpas a Aouda, uma viúva que viera com ele desde Calcutá. Ela, por sua vez, propõe-lhe casamento. Entretanto, Passepartout vai contratar um padre e descobre que a sua jornada, através dos fusos horários, lhes valeu um dia e que, afinal, não é tarde demais para ganhar a aposta. Avisa Fogg, que chega ao Reform Club para cumpri-la.
E Fogg volta à sua rotina: acorda sempre no mesmo horário, barbeia-se, toma o pequeno-almoço e parte para o Reform Club, onde passa o restante do dia. Almoça e lê os principais jornais da capital inglesa. À noite, reúne-se com os colegas para a tradicional partida de uíste (jogo de cartas para duas duplas, ancestral do Bridge) e para comentar os assuntos do dia. À meia-noite, pontualmente, volta para casa.
É importante deixar para as vossas leituras a descrição das vibrantes peripécias da viagem, numa narrativa animada, que ganhou fama mundial e foi um sucesso de vendas em diferentes idiomas. Uma versão teatral (1874), escrita por Verne e o dramaturgo francês Adolphe d’Ennery, também foi um grande sucesso e durou várias décadas. Esta obra inspirou inúmeras tentativas de viajar ao redor do mundo em 80 dias ou menos, principalmente pela jornalista americana Nellie Bly (1889-90). A versão cinematográfica mais conhecida (1956) tem estrelas como David Niven, Cantinflas e Shirley MacLaine e venceu o Oscar, em 1957, nas categorias de melhor filme, melhor história adaptada, melhor montagem, melhor fotografia e melhor banda sonora.
Um livro que ainda hoje é uma inspiração para quem quiser aventurar-se em viagens com adrenalina.
Por Jorge Mangorrinha, Pós-Doutorado e Professor em Turismo
*O autor escreve todos os meses sobre um livro à escolha
** Próxima obra: Diário de “Bordo”, Fernando Távora
Ver também: A Biblioteca de Jorge Mangorrinha: Teoria da Viagem, de Michel Onfray