Segunda-feira, Maio 19, 2025
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A frágil e ténue linha entre a criatividade e a depressão. Na cozinha!

O mundo da cozinha parou no dia 8 de junho de 2018 quando a CNN avançou que o chef, escritor e apresentador de televisão Anthony Bourdain foi encontrado morto num quarto de hotel por Eric Ripert, chef francês e amigo próximo, tendo vários jornais avançado com a informação de que o chef ter-se-á suicidado.

Deu-se então um novo início à conversa acerca dos problemas existentes dentro das cozinhas, e a que se dão vários adjetivos. Depressão, esgotamento físico e mental, sentimento de incapacidade e até pensamentos suicidas: esses são alguns dos indícios da Síndrome de Burnout, um transtorno cada vez mais comum que se caracteriza por um estado de stress devastador, extremo, e superior à capacidade pessoal de lidar com questões do dia a dia de modo eficiente, sendo relacionado exclusivamente com o trabalho. As nossas cozinhas estão cheias desses fatores.

A história começa de novo, com os vínculos precários, as horas infindáveis de trabalho não remunerado a coberto de se estar a trabalhar numa cozinha premiada ou com um chef de renome internacional. A pressão é extrema, pede-se muito por muito pouco, começa-se por ‘um mau estar’ no estomago, passa para as dores de cabeça recorrentes, o sono deixa de ser reparador porque a agitação é tanta que nem o corpo descansa, nem o cérebro pára naquele tempo de recuperação diária.

Grande parte dos profissionais começam a isolar-se, as relações pessoais e familiares começam a desaparecer. Passa-se então à fase seguinte que é adormecer o corpo e o cérebro voluntariamente. Aparecem as drogas e o álcool, e em casos extremos, como também escreveu Bourdain no artigo “Don’t Eat Before Reading This”, na revista New Yorker. “Há uns anos, ouvi sem surpresa os rumores de um estudo que terá apurado que a profissão mais comum entre os presidiários antes de serem colocados atrás das grades, é cozinheiro.”

Antigamente dizia-se que se estava com um esgotamento. Depois o tempo foi evoluindo e o esgotamento tornou-se no Síndrome de Burnout, que é, como se diz agora, um esgotamento gourmet. O efeito é o mesmo!

Um estudo de 2016 publicado no Journal of Positive Psychology concluiu que a prática diária de uma atividade criativa fácil, como cozinhar, pode elevar-nos a um estado de felicidade e deixar-nos mais entusiasmados com os nossos planos para o futuro.

Mas isto é válido quando cozinhamos em casa para amigos, porque na realidade profissionalmente não se aplica.

Dizem os entendidos que a comida tem um significado físico e emocional, e fazer e servir comida para outras pessoas é um conforto para quem faz e para quem recebe. Mas até que ponto?

Em França por exemplo, ser cozinheiro é considerado uma profissão nobre. Em Portugal, como seremos vistos?

Existe um lobby gastronómico que vive à custa de muitos chefes quando eles estão na ribalta, mas quando o “fusível” queima são de imediato descartados. Já não interessam, deixam de ter relevância, tornam-se esquecidos e passam para o final da lista telefónica, ou são mesmo apagados, para logo de seguida aparecerem os chamados chefes necrófagos prontos a ocupar o lugar do estrelato tornado vago. E a roda do hamster continua a girar lentamente e continuamente.

Existe, ou deveria de existir, uma associação dos profissionais de cozinha que devia ser responsável por lutar pelos 99,99% dos profissionais que se encontram na sombra do anonimato, e que são todos os que na realidade alimentam este país. Nos restaurantes, cafés, hotéis, casas de pasto, cantinas, entre outros estabelecimentos existentes.

Todos estes profissionais das áreas da cozinha, sala e bar, os denominados, desde que iniciam funções nesta carreira da cozinha ou mais internacionalmente de food & beverage, começam desde logo a sentir as pressões, as faltas de respeito, as injúrias, aquelas pressões” sorrateiras- “tu é que sabes”.

A rasteira cobarde a alguém que chega de novo e é atirado à piscina sem saber nadar, e que ou aprende a nadar ou se afoga. É a lei da sobrevivência.

E não, não acabaram as centenárias praxes dos padeiros, dos pasteleiros ou dos cozinheiros, tal como as dos cortadores de carnes ou salsicheiros, (artes que vão cada vez mais escasseando).

E não, não terminaram as praxes dos colegas da sala.

E se perguntamos se “isto vai sempre assim?” a resposta que obtemos é que “antes de melhorar vai piorar.”

Quando hora após hora, dia após dia, semana após semana, vamos estando primeiro numa overdose de satisfação, por estarmos a fazer o que gostamos, e a cumprir um sonho, quando tomamos consciência da realidade rapidamente percebemos que existe um fosso muito grande entre os chefes e os cozinheiros.

Aliado a toda esta pressão e a denominada tradição, é o facto de atualmente os cozinheiros serem, na sua grande maioria, provenientes de escolas de cozinha e hotelaria, não tendo sido formados na, denominada pelos mais velhos, tarimba.

E esses mais velhos, que incutiram na geração seguinte a malandrice da aprendizagem na prática, são os mesmos que estão atualmente a chefiar cozinhas formadas com a nova geração de cozinheiros com formação científica. E isso não lhes agrada. E por esse facto agravam ainda mais o bullying a que são sujeitos os profissionais da área da cozinha. Sim. vamos atribuir nomes às coisas.

Bullying, é aquela nova palavra que significa uma série de atitudes relacionadas com o assédio moral no local do trabalho, por exemplo.

Significa ameaça ou coerção para abusar, intimidar ou dominar agressivamente outras pessoas de forma frequente e habitual, percecionado por um desequilíbrio de poder.

Os comportamentos usados para afirmar dominação podem incluir assédio verbal ou ameaça, abuso físico ou coerção, e tais atos podem ser direcionados repetidamente contra alvos específicos, sendo, contudo, sempre difíceis para não dizer impossíveis de provar.

Tudo isto existe nas nossa cozinhas, ainda fortemente hierarquizadas, onde existe um chef onde a sua palavra é a única, sendo os novos ajudantes de cozinha ensinados no seu primeiro dia desse facto, e de que a única expressão que podem utilizar a qualquer interpelação do chef é: ‘Sim chef!’

Ficamos chatos, os nervos ficam à flor da pele – dizem que é normal, é da pressão, temos de dar o desconto. Logo a noite bebemos umas cervejas, para desanuviar, depois uns whiskeys, ou para ser mais moderno uns gins, que até podem ser confundidos com água, e fuma-se um cigarro. Tudo continua a ser normal.

É a paixão, e o orgulho. É o dever, dizem. Até ao dia do reconhecimento do burnout ou da depressão.

Aí dizem que todos os génios são malucos. Arranjam-se desculpas para tudo, para não dar parte fraca, pois não podemos mostrar fraqueza, mesmo que depois em casa se esteja sozinho a beber uma garrafa de vinho, desejoso que chegue o outro dia para voltar para trabalho. Só se sentem bem lá!

Nessa altura a desculpa é de que o profissional é um workaholic. Ninguém reparou que não está bem, que os amigos que tinha já não tem, a família foi-se embora, está sozinho e que a sua vida não faz sentido sem a cozinha.

Ninguém percebe, ou não quer perceber que o seu estado é anormal e que precisa de ajuda. Porque isso é sinal de fraqueza.

Não houve ninguém que antes de surgir esse estado dissesse: OBRIGADO, pelo trabalho que fizeste, fazes e ainda vais fazer, ou simplesmente pergunte, “como estás?”.

Parece que estamos embrenhados e presos no nosso mundo, onde o outro não faz parte. A palavra sincera e gentil, o reconhecimento do outro, um sorriso sincero e um aperto de mão, fazem toda a diferença.

O ‘obrigado’, essa palavra mágica que provoca milagres, o remédio mais barato do mundo, mas ao mesmo tempo tão difícil de dizer, e que sabe tão bem ouvir.

Este é o fruto de uma sociedade que esqueceu a força e poder de palavras como: obrigado, por favor, com licença, desculpa e de nada. Utilizá-las no dia-a-dia faz toda a diferença.

Mas remetendo-nos de novo para as nossas cozinhas, com vínculos precários, salários miseráveis e por vezes com condições indignas para servir comida, sobram-nos aquelas palavras mágicas que podem fazer toda a diferença.

Está na altura de mudar a relação entre a vida pessoal e a vida profissional. Temos de começar a perceber que ‘há mais vida para além da cozinha’.

Na área da restauração e hotelaria, tal como na vida, temos de nos capacitar que nenhum prato da carta é suficientemente caro para pagar o custo do bem-estar dos profissionais. Porque como por cá se diz: “Haja saúde, que o resto compra-se”!

Por Francisco Siopa

É Executive Pastry Chef & Trainer

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5 COMENTÁRIOS

  1. Importante artigo a focar uma temática tão em dia! Gostei no geral, mas o que me leva a escrever estas linhas é o parágrafo relacionado com a associação do setor.
    Sim Francisco, existe a Associação de Cozinheiros Profissionais de Portugal (ACPP), mas para a qual muitos, diria a maioria, dos ditos profissionais não contribui, principalmente com ideias e com valor acrescentado. Esta mesma associação que existe desde 1977 tem ao longo dos anos representado os profissionais de cozinha, que é possuidora de espectacular biblioteca gastronómica e que diariamente recebe nas suas modernas instalações (próprias) dezenas de alunos, parte dos quais saíra para o mercado de trabalho munido de conhecimento, não só técnico mas também relacionado com aspetos que modernamente se dignam por competências.
    Será por ventura fácil atribuir responsabilidades a outros, mas deverá ser cada um a ter o seu papel de relevo, seja na sua equipa, seja na dita associação que nos representa.
    A ACPP está cá, orgulhosamente de portas abertas a todos os profissionais que queiram ajudar a desenvolver melhor futuro, para todos nós.

    Obrigado pelo artigo até porque este me permitiu pensar de novo neste tema.
    Bem-hajas Francisco

  2. O outro lado do muro do mundo da cozinha profissional. Que ninguém chore um centimo pelo prato que Lhe foi apresentado, porque ninguém sabe o esforço e a dedicação extrema que nele foi colocada. Há algo que tem ser revisto na carreira de todo staff que compõem uma cozinha, que proteja os colaboradores de competições ferozes entre chefes e espaços que dominam.

  3. …pois pois eu ainda não encontrei nenhuma associação ou sindicato que dignamente e sem meter dinheiro aos bolsos representasse a Classe das gentes da cozinha, sejam Chefes ou copeiros, pelos vistos anda tudo a viver á custa da nova moda, que é, ser cozinheiro chefe ou ajudante de restaurantes nos quais os patrões não percebem patavina, simplesmente fizeram o investimento mas azurquicam a cabeça aos trabalhadores.

  4. Caro Francisco Siopa,
    Uma palavra de louvor pela frontalidade ao expor eloquentemente alguns exemplos que todos conhecemos mas por variadissimas razões não nos unimos para os melhorar ou mesmo exterminar.

    Com um forte Abraço de agradecimento pela chamada de atenção.
    Até breve e até sempre

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