Marie Audren, diretora-geral da HOTREC (Associação Europeia da Hospitalidade) desde 2020, vem a Portugal no próximo dia 11 de maio para participar, como oradora principal, no Hotel 4.0 Portugal Summit. O evento sobre a transformação digital da hotelaria, vai decorrer no Centro de Congressos da Alfândega do Porto e é promovido pela AHRESP.
Com uma vasta experiência em assuntos públicos da União Europeia (UE), Marie Audren, deu uma entrevista ao Tnews, em que fala sobre os principais desafios do setor nos próximos anos.
Quais são as principais disrupções que vão moldar o setor da hotelaria nos próximos anos?
A hotelaria europeia está preparada para enfrentar desafios significativos nos próximos anos. Todos estamos cientes dos efeitos devastadores que a covid-19 teve no nosso setor: muitas empresas ainda enfrentam falta de liquidez, que levará tempo a voltar à normalidade. Além disso, o setor deve lidar com a escassez de mão-de-obra e a falta de skills: um requisito fundamental para uma transição bem-sucedida para um modelo de negócios mais digital, sustentável e resiliente. Atrair e reter a força de trabalho tem sido, há muito tempo, uma questão crítica para a hotelaria e irá continuar a representar um grande desafio. Esses fatores, juntamente com os aumentos de preços, desencadeados antes mesmo da crise ucraniana, podem ter efeitos disruptivos na nossa indústria.
Quais são as maiores oportunidades e ameaças para o seu setor em particular?
Após dois anos de restrições de viagem e encerramentos frequentes, podemos dizer que a hotelaria fez muita falta! As pessoas estão a esforçar-se para viajar e para sair novamente: a importância dos serviços de hotelaria para o bem-estar pessoal e para a qualidade de vida não podem ser dados como garantidos. E esta é a grande oportunidade para o setor.
Ao mesmo tempo, o nosso setor vive uma era de transição que traz muitas oportunidades de crescimento, competitividade e inovação. Nos próximos anos, iremos continuar a motivar os nossos membros a investir significativamente para se tornarem mais digitais, sustentáveis e resilientes. Juntamente com os outros parceiros da indústria, no ecossistema do turismo europeu, contribuímos para moldar o caminho de transição da Comissão Europeia para o turismo. Esperamos continuar a trabalhar em conjunto com a Comissão e com os Estados-Membros para permitir a criação das infraestruturas necessárias que permitirão às empresas hoteleiras investir e acompanhar as mudanças que se avizinham.
O grande desafio agora é apoiar a transição de um setor que esteve em “modo de sobrevivência” durante dois anos – e que ainda estará numa situação precária num futuro próximo – para um setor que esteja equipado para fazer esses investimentos necessários.
“O nosso setor vive uma era de transição que traz muitas oportunidades de crescimento, competitividade e inovação”
Agora que a pandemia parece estar sob controlo e as restrições estão a ser flexibilizadas, qual é o maior desafio para as empresas?
Embora a pandemia pareça estar sob controlo, não podemos dizer o mesmo sobre o seu impacto de médio e longo prazo na hotelaria europeia. As empresas, em toda a Europa, enfrentam agora o desafio de reembolsar os empréstimos acumulados, durante dois anos de restrições e encerramentos, porque as empresas precisavam de continuar a pagar os custos fixos.
“Milhares de empresas estão em risco de falência e precisam de financiamento e apoios contínuos das instituições europeias e dos Estados-Membros para se manterem viáveis”.
Durante a pandemia, os governos (de diferentes formas) apoiaram as empresas. Agora que reabriram, a HOTREC defende que esse apoio deve continuar?
Embora os estabelecimentos de hotelaria tenham aberto novamente as suas portas para hóspedes em toda a Europa, reabrir não é o mesmo que recuperar. Como mencionado, muitos negócios enfrentam as consequências de dois anos de incerteza e perda de volume de negócios, e a sua sobrevivência está em risco.
Por esta razão, em novembro passado, a HOTREC congratulou-se com o prolongamento do Quadro Temporário dos Auxílios Estatais até junho de 2022, e ainda esperamos uma nova prorrogação. A maioria dos nossos membros espera uma recuperação total até 2024 ou mais tarde – e essa previsão foi antes da crise ucraniana. A atual situação geopolítica tem potencial para agravar esse cenário. A nossa indústria ainda precisa do apoio da UE e dos Estados-Membros para impedir que milhares de empresas fechem permanentemente.
“Muitos negócios enfrentam as consequências de dois anos de incerteza e perda de volume de negócios, e a sua sobrevivência está em risco”.
Agora, que papel devem os governos desempenhar no apoio à recuperação de negócios? Que iniciativas/apoios podem dar para incentivar o consumo?
O que as empresas de hotelaria realmente precisam é que o Mecanismo de Recuperação e Resiliência e os Fundos de Coesão sejam implantados de forma a poderem beneficiar do financiamento da UE. Ou seja, os governos devem agora colocar o turismo no centro dos seus planos de recuperação.
Os governos também podem apoiar o nosso setor, permitindo uma “pausa de IVA” temporária, definindo a taxa de IVA mais baixa possível, de acordo com a legislação nacional e da UE em 2022, e mantendo essa taxa de IVA reduzida para serviços de hotelaria após 2022.
Essas formas de apoio e iniciativas iriam permitir que os serviços de hotelaria se reinventassem e atendessem à procura dos consumidores por digitalização e sustentabilidade.
“Os governos devem agora colocar o turismo no centro dos seus planos de recuperação”.
Após a pandemia, estamos à beira de uma crise económica, com aumento dos custos de energia, inflação, guerra na Europa. Como é que tudo isso pode afetar o setor da hotelaria?
Infelizmente, a crise ucraniana está destinada a afectar a nossa indústria num momento de grande fragilidade e influenciará a velocidade da recuperação.
Os estabelecimentos hoteleiros já estão a sofrer com uma taxa de inflação crescente e enfrentam agora os efeitos de um forte aumento dos preços da energia, dos alimentos e das matérias-primas. Esta é mais uma razão pela qual apelamos a um apoio continuado ao nosso setor por parte da UE e dos governos: as instalações em toda a Europa precisarão de ainda mais ajuda para enfrentar este novo desafio enquanto lidam com as consequências da covid-19.
Quais são as perspetivas de crescimento do setor para este ano?
De acordo com o último barómetro turístico da OMT, as chegadas de turistas internacionais globais aumentaram para mais do dobro (+130%) em janeiro de 2022, em comparação com 2021. Embora a hotelaria ainda esteja frágil depois da covid-19, estes números confirmam uma tendência global positiva, com as pessoas a quererem começar a viajar e a reunir-se novamente. Isto faz-nos esperar que, com o apoio contínuo das instituições europeias e dos governos nacionais, o nosso sector esteja no caminho certo para a recuperação. Já vimos que os números relativos ao volume de negócios e ao emprego, nos finais de 2021, eram comparáveis aos registados em 2015, mas ainda ficam aquém dos números de 2019, que foi um ano recorde para o turismo e para a hotelaria na Europa. A menos que a situação da saúde pública se deteriore significativamente de novo, podemos estar confiantes de que 2022 será um ano melhor do que 2020 e 2021. Mas falar de crescimento em 2022 pode parecer um pouco desajustado, uma vez que estaríamos a aferir este crescimento no final de dois anos muito difíceis para o nosso sector.
“A menos que a situação da saúde pública se deteriore significativamente de novo, podemos estar confiantes de que 2022 será um ano melhor do que 2020 e 2021”.
Como pode o setor enfrentar o desafio da falta de trabalhadores?
Encontrar soluções e possíveis estratégias para atrair e reter mão-de-obra no setor hoteleiro é uma das principais prioridades da HOTREC. Estamos a encorajar o desenvolvimento de ações de formação e aprendizagem em toda a Europa. Estamos também a promover a aplicação das recomendações do Conselho sobre ações de aprendizagem.
No início de março, subscrevemos o Pacto Europeu para as Competências, que promove ações conjuntas para maximizar o impacto do investimento na melhoria das competências existentes (requalificação) e na formação em novas competências (requalificação). Aguardamos e encorajamos os nossos membros a aderir e desenvolver parcerias nacionais para preencher as lacunas de competências existentes.
A HOTREC está também a encorajar a renovação do Passaporte de Competências Hoteleiras, uma vez que esta iniciativa poderia ajudar a ligar empregados e trabalhadores do setor com base nas suas competências.
Finalmente, acreditamos que as migrações legais devem ser encorajadas, e aguardamos com expetativa a nova estratégia da Comissão Europeia sobre migração – e, possivelmente, também uma nova plataforma da UE onde pessoas de países terceiros possam facilmente encontrar um emprego. Mais uma vez, consideramos a renovação do nosso passaporte de competências de hotelaria uma necessidade.
Muitos peritos em turismo e viagens preveem um regresso à atividade “normal” até 2023. Esperamos que estas previsões se revelem verdadeiras e que o setor da hotelaria volte a prosperar como nos anos que precederam a pandemia. Mas mais uma vez, isto depende do apoio dos governos e da minimização dos efeitos de eventos exógenos, como a guerra na Europa.
“Encontrar soluções e possíveis estratégias para atrair e reter mão-de-obra no setor hoteleiro é uma das principais prioridades da HOTREC”
- Porque é que a adoção definitiva da Lei dos Mercados Digitais (DMA) é uma boa notícia para o setor?
A 25 de março, os legisladores da UE chegaram a um acordo histórico que conduzirá à adoção definitiva da Lei dos Mercados Digitais (DMA). A DMA estabelecerá novas regras para os “gatekeepers”, que exercem um poder desproporcionado em relação aos seus utilizadores comerciais e consumidores. Há vários anos que os hoteleiros sentem que as principais OTAs exercem sobre eles um “poder de guardião” e envolvem-se em comportamentos injustos e, por vezes, condenáveis, com os quais podem escapar graças ao seu poder de mercado muito poderoso e a uma posição de negociação desigual. Por outras palavras, os hoteleiros tiveram de aceitar os termos e condições das OTAs numa base de “pegar ou largar”.
Por exemplo, os legisladores da UE estabeleceram uma proibição de cláusulas estreitas de paridade de preços, que impedem os hoteleiros de oferecer um preço melhor nos seus próprios canais do que na plataforma e proporcionam aos utilizadores empresariais um melhor acesso aos dados gerados pelas suas listas.
- Quais são as perspetivas para o setor hoteleiro? Quais são as principais áreas de foco para a HOTREC em 2022 e mais além?
Estamos otimistas quanto às perspetivas de futuro da hotelaria, e esperamos, desta vez, estar definitivamente fora da pandemia. Ao mesmo tempo, no entanto, temos de permanecer vigilantes.
2022 será mais um ano atarefado para a HOTREC e para os nossos membros, onde iremos dar prioridade à sobrevivência de milhões de empresas, PMEs, e trabalhadores que constituem na nossa indústria. A recuperação exigirá uma forte cooperação e uma maior coordenação a nível da UE.
Continuaremos também a concentrar-nos em “temas chave” para a indústria hoteleira, tais como a mencionada escassez de mão-de-obra, e a ajudar a liderar o caminho para uma indústria mais verde, mais digital e mais resiliente, mantendo ao mesmo tempo um ambiente empresarial justo.