Um hotel sem prazo de validade
No centro histórico do Porto, o PortoBay Flores Hotel tem uma excelente localização como ponto de distribuição para as atrações mais típicas da cidade. Este hotel absorve os 500 anos de história do edifício onde se insere, imprimindo gestos de modernidade às linhas clássicas que herdou. Um palacete do século XVI e uma ala construída de raiz oferecem 66 quartos e suítes, restaurante e bar, spa, ginásio e pequena piscina interior com luz natural. Conta, ainda, com sala de reuniões, sala de leitura e capela do século XVIII. O pátio ajardinado é tranquilo para relaxar, em pleno centro da cidade e em contraponto com a agitada Rua das Flores – “A gem in the historic centre!”
Percorro a Rua das Flores, agora fechada ao trânsito e que era, antigamente, uma das ruas mais importantes do Porto, porque ligava o comércio da zona do rio aos mercados e era onde se instalaram casas comerciais, locais de venda de alfaias e produtos agrícolas e agências bancárias, para aproveitarem a proximidade à Estação de São Bento. Era a rua onde morava parte da nobreza da cidade e, também, o clero pertencente à Ordem de São Miguel Arcanjo. Conta-se que em 1521 se deu a abertura da então Rua Santa Catarina das Flores. Quase toda a área era ocupada pelas hortas do bispo, onde este cultivava flores, nomeadamente. Esta rua é exemplo de decisão, de planeamento e de desenvolvimento urbano no século XVI, quando se definiu a necessidade de criar eixos de crescimento e de saída da cidade ribeirinha, ligando a cota baixa e a cota alta através de terrenos da propriedade do bispo, do cabido e da Misericórdia, não urbanizados ainda, apesar da sua localização dentro da muralha Fernandina. Paralelamente à Rua das Flores, a Rua Mouzinho da Silveira – onde, aliás, eu vivi nos meus primeiros meses de aluno universitário – foi construída no final do século XIX, para duplicar o trajeto norte-sul e resolver um problema de salubridade pública, encanando o rio da Vila que era um esgoto a céu aberto.
Inicialmente, foi determinado pelo bispo que cada casa a construir no novo arruamento fosse marcada nos seus cunhais com o símbolo do seu foro, a figura de São Miguel Arcanjo ou a roda de Navalhas de Santa Catarina.
A Casa dos Ferrazes Bravos, ou Casa dos Maias, é um edifício nobre quinhentista, de planta em U, dois pisos e antiga sobreloja. A fachada principal voltada para a Rua das Flores e orientada a sul tem oito janelas de sacada no primeiro piso, com gradeamentos em ferro forjado, e encimadas por frontões em triângulo abatido. Ao nível do piso térreo, há diferentes aberturas para a rua, demarcando-se duas delas encimadas pelas pedras de armas iguais: brasões partidos de Bravo e Ferraz. As pedras armoriadas, com escudo em granito de grão fino de contornos ao gosto quinhentista, encaixam em movimentadas linhas de volutas e contravolutas assentando nas duas aberturas da sobreloja ao gosto barroco. Estes brasões estão montados numa estrutura ornamental composta por volutas e enrolamentos barrocos, talvez em resultado das intervenções realizadas no século XVIII. O beiral do telhado, bastante saliente, apoia-se em cachorros de granito. No interior, possui uma ampla escadaria de acesso ao andar nobre, constituída por dois lanços laterais e um central. Sobre a guarda das escadas apoiam-se, de cada lado, três colunas de granito, com bases e capitéis. Este edifício harmoniza-se com outros edifícios de características semelhantes inseridos na mesma rua.
Historicamente, em 1528, foi herdado o terreno por Luiz Toledo, sua mulher e seus filhos, para construir uma casa nobre. No tombo do “Censual da Mitra do Porto” (1542), constam como proprietários de casas na Rua das Flores, “da parte de cima” e “em terrenos que foram da Mitra, um fidalgo de nome Ferraz e outro de Manuel Bravo”. O fidalgo Martim Ferraz, descendente de uma família nobre de Entre-Douro e Minho, casou com a filha de Manuel Bravo. Desta união surgiu a família dos Ferrazes Bravos.
Já no século XVIII, é construída a capela, de planta centralizada octogonal e revestida de talha dourada no seu interior, e introduzem-se elementos decorativos na fachada e outros ornamentos atribuídos a Nicolau Nasoni.
Os Ferrazes Bravos foram proprietários da casa até ao segundo quartel do século XIX, com a morte de João Pereira da Cunho Ferraz, altura em que foi adquirida por Domingos de Oliveira Maia, pertencente a uma família aristocrata e nobre e sendo um ilustrado viajante, daí o nome Casa dos Maias. Ocupou a casa por pouco tempo, mas terá sido o período burguês que corresponde ao momento áureo da Rua das Flores, aquele em que viviam famílias de alto estrato social. Domingos Maia nunca casou, nem teve filhos, falecendo em 1863 nesta casa e deixando todos os seus bens aos sobrinhos-netos, que a administraram nos tempos seguintes.
Depois dos tempos senhoriais, foi o clero que habitou o edifício, ficando, por último, entregue ao bispo, que viveu sozinho em toda esta extensa área até que lhe arranjaram uma nova morada. No piso térreo, um símbolo esculpido originalmente na pedra lembra que esta casa foi abrigo de judeus em tempos de Inquisição.
Recentemente, por interesse do grupo PortoBay, operaram-se obras profundas de reabilitação e requalificação. O edifício é referenciado pelo seu grande interesse patrimonial, dado o valor arquitetónico, artístico e histórico, estando classificado como Imóvel de Interesse Público. Juntou-se-lhe uma ala nova, nas traseiras, interligados entre si. A área total de construção inclui, assim, a antiga casa senhorial com 3 pisos e o novo edifício com 8 pisos. No conjunto, o hotel apresenta um total de 60 quartos e 6 suites (11 no antigo palacete e 55 no edifício novo). Abriu portas a 6 de setembro de 2019.
O “staff” é educado e treinado. O rececionista Fábio Figueiras deu-me as boas-vindas. É licenciado em Turismo, pelo ISCET – Instituto Superior de Ciências Empresariais e do Turismo. Fez o “check-in” e entregou-me uma chave magnética com a imagem de um dos hotéis do grupo PortoBay, neste caso correspondente ao PortoBay Rio de Janeiro. Logo se agendou uma visita guiada para essa tarde. Na ocasião, ofereceu-me um livrinho da fotógrafa Julien Kam, intitulado “Porto Bay Flores: The Story of a Reconstrution”. Além das fotografias, há textos de Ingrid & Johannes Tryba, de Samuel Torres de Carvalho (STC – Arquitetura) e de Sofia e Cláudio Santos (Portobay) e desenhos da STC – Arquitetura. Para um escritor, que também é arquiteto, nada melhor do que olhar em redor e folhear este cartão de visita, com informação do projeto e da obra. «O arquiteto fez como quis», disse Fábio Figueiras. E ainda bem, digo eu, mas adianto que, com certeza, teve quem entendesse e respeitasse o seu trabalho de arquitetura. Nem sempre acontece assim, mas isso são contas de outro rosário. A decoração de interiores é da arquiteta Catarina Cabral.
O hotel não tem estacionamento próprio, mas tem o serviço de um funcionário que transporta as bagagens, neste caso para, ou desde, o estacionamento da Praça do Infante D. Henrique.
Subindo ao piso superior do antigo palacete por uma escadaria majestosa e com pedras e azulejos originais, encontramos as salas de pequenos-almoços, que já foram o restaurante para jantares, até que se optou por transferi-lo para o piso térreo, com a vista para a Rua das Flores. A suíte que me coube tem particularidades, pois preservou os arcos de uma antiga cozinha e de um banheiro rebaixado, onde agora é um surpreendente duche a um nível mais baixo em relação aos sanitários e à sala de estar e com pé-direito alto. A suíte tem vista para o jardim interior.
Descalço-me e enfio os chinelos de têxtil tingido a preto e não simplesmente brancos como é habitual na hotelaria. E há uma balança, uma raridade, onde confirmo o peso que imaginei ter, mas estes dias, afinal, não são iguais aos do quotidiano, pelo que não importa prevaricar um pouco. Sobre a mesa, há algumas ofertas comestíveis e um vinho da Herdade de São Miguel (Casa Relvas), colheita selecionada de 2022, premiado com a Medalha de Ouro 2024 do Concurso Mundial de Vinhos de Bruxelas. Ao lado, está um envelope dentro do qual retiro um postal com uma pintura do Porto e as palavras amáveis da diretora-geral Ana Teresa Matos:
“É um prazer recebê-lo no nosso hotel! Esperamos que a sua estadia seja repleta de conforto, requinte e pura alegria.
Sabemos que o seu trabalho exige atenção aos detalhes, por isso, garantimos que nada faltará (inclusive uma cama que seja à altura da sua capacidade investigativa… e de descanso).
Se precisar de algo, não hesite em nos chamar – a não ser que esteja a escrever uma reportagem, nesse caso, ficamos à espera da sua ‘crítica’ sobre a nossa hospitalidade.
Com os nossos melhores cumprimentos,
Ana Teresa Matos & Wondeful Team”
Descendo novamente reparo que, no corredor junto à receção, há um quarto exclusivo para utentes com mobilidade condicionada, naturalmente sem barreiras físicas, embora “qualquer pessoa com cadeira de rodas consiga ter acesso a todos os quartos”, refere Fábio Figueiras. Este é um corredor pretensamente escuro que atravessa, subterraneamente, o jardim até à ala nova, por onde se observam algumas obras de arte.
Entrei num dos quartos do último piso. Estes quartos têm ampla varanda, porque são recuados em relação aos andares inferiores e de onde se delicia o melhor da vista a partir deste hotel sobre a cidade. Ali poisavam as duas gaivotas que resistiram à nossa presença e se deixaram fotografar para a posteridade. Estes últimos quartos tiram partido da cércea conquistada em projeto, pois ainda conseguem ter uma cama em “mezzanine”. Nesta ala, todos os quartos têm duche, porque as banheiras só existem no edifício do palácio.
No Mandala Spa Flores, encontrei Isa Moreira, que me recebeu, simpaticamente. A este gesto de acolhimento, também sou sensível a uma imagem exposta na parede, pedindo o silêncio tão precioso, uma raridade. O espaço tem piscina com luz natural, três salas de tratamento e ginásio: “Com horário alargado, oferece experiências de spa personalizadas”, segundo a promoção. O Mandala Spa Flores é um lugar mágico, onde corpo e mente alcançam um nível ímpar de bem-estar. Aberto todos os dias, permite que as terapeutas adaptem às necessidades do cliente terapias oriundas do Sudeste Asiático, com tratamentos baseados na medicina indiana e tailandesa.
Voltando ao átrio de entrada, vejo que está pleno de estrangeiros, a maioria dos hóspedes, particularmente norte-americanos. Ao lado, o restaurante espera-me para um jantar que, a meio, passou a ser iluminado à luz da vela, porque o dia era dedicado, internacionalmente, ao Planeta Terra. Segundo me contaram, foi uma primeira experiência neste hotel.
Com uma voz quase sumida, a Mariana Magalhães serviu a refeição. De entrada, uma manteiga saborosa, proveniente de um fornecedor do Porto, condimentada com flor de sal e cebolinho. Ao mesmo tempo, uma cortesia do “chef”, uma “bruschetta” italiana com sardinha portuguesa. A refeição completou-se com sopa de cebola, risoto de corvina com açafrão, manjericão e espuma de manjericão. A completar, a tradicional salada de frutas. As migalhas da refeição sempre estiveram presentes, pensei que fosse esteticamente propositado, por causa do pão muito estaladiço, produzidas ali mesmo durante a refeição e não daquelas que já se compram nos mercados. Talvez uma particularidade deste hotel, até porque no banquete da vida a amizade é o pão, diz o povo.
Diogo Moura é o chefe de sala e o subchefe é Johnny Molinsky. Na cozinha, coordena Vânia Dinis. Natural de Vila Franca de Xira, a “chef” Vânia Dinis percorreu diferentes cidades portuguesas, enriquecendo o seu percurso com diversas experiências. Apaixonada por viagens, sempre encontra nelas a inspiração que traz para a cozinha. Estagiou no restaurante Apego, sob a orientação da “chef” Aurora Goy. Em 2019, passou a integrar o grupo PortoBay, passando pela cozinha dos hotéis portuenses PortoBay Teatro, onde lidera a cozinha do restaurante Il Basilico, e PortoBay Flores, onde eu me surpreendi com as suas criações.
Na despedida, uma foto, com a estagiária de receção Amélia Rodrigues, que se licenciou em Línguas no Reino Unido, mais o Fábio e o João Guimarães.
Nos dois dias e uma noite em que presenciei a roda livre de hóspedes pelos diferentes espaços, foi nos corredores do piso em que me alojei que encontrei o sorriso e a gentileza da camareira Natália, brasileira de origem, mas que sabe usar as palavras certas no tratamento interpessoal. No final deste texto, devo salientar esta função, que dificilmente se lê nos textos sobre hotéis. Estas pessoas, mais humildes e simples, têm uma importância incontornável na hotelaria e, neste contexto, a Natália faz esquecer a ausência de alguém de topo, com quem é sempre importante conversar para o meu objetivo. O texto não fica mais pobre, antes pelo contrário, fica rico de humanismo.
Este é um hotel que, curiosamente, faz reciclagem dos frascos de compota para colocar as de fabrico próprio e cuja anterior validade “se esconde” sob o selo PortoBay. Porquê? Porque, mais do que a hesitação que isso possa gerar ao cliente mais curioso, o que importa é que este hotel não tem prazo de validade. Dá vida às coisas e a uma casa com mais de 500 anos. Continuamente, o PortoBay Flores Hotel revive o passado, aclama o presente e impele o futuro.
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*Jorge Mangorrinha é pós-doutorado em Turismo, doutorado em Urbanismo, mestre em História Regional e Local (especialização em Património) e licenciado em Arquitetura. Autor multifacetado recebeu o Prémio José de Figueiredo 2010 da Academia Nacional de Belas-Artes. Com experiência no planeamento turístico, em Portugal e no estrangeiro, exerceu, também, como gestor técnico na Parque Expo’98 e como presidente da Comissão Nacional do Centenário do Turismo em Portugal (1911-2011). Colabora com o TNews, tendo sido o autor da rubrica “A Biblioteca de Jorge Mangorrinha”, a que se seguiu “Há História no Hotel”.