Em entrevista, Rafael Polónia, fundador da Landescape, fala sobre um turismo que devolve às comunidades locais e promove experiências culturais autênticas, trocando o conforto previsível pela imersão. Desde 2016, a agência de viagens Landescape leva viajantes aventureiros a países como Irão, Guatemala, Índia, Omã e Tajiquistão, priorizando parcerias locais e práticas sustentáveis em mais de 40 destinos.
Como surgiu a ideia de fundar uma agência de viagens como a Landescape, focada em viagens culturais e de aventura?
Venho da área dos espetáculos e, portanto, a minha formação é na área da dança, da música e do teatro. Estava num ponto da minha vida em que havia muita gente a sair da faculdade e eu achava que estava a perder o meu conhecimento das novas tecnologias para continuar a trabalhar naquela área. Na altura, eu e a Tânia, que era a minha namorada, decidimos despedir-nos e achávamos que era a altura certa para fazer alguma coisa com o dinheiro que tínhamos acumulado. Fomos fazer uma viagem de bicicleta entre Ovar e Istambul, ida e volta. Quando chegámos, parámos durante cerca de oito meses e fizemos uma outra viagem de bicicleta até Macau. Uma viagem foi de nove meses, a outra de 19 meses.
Quando voltei a Portugal, vinha com informação e memórias surreais e pensei: “Tenho de partilhar isto tudo”. Na área do teatro fazia coordenação de palco e também gostava de viajar, por isso decidi juntar as duas coisas e fazer coordenação de viajantes e de líderes de viagem, viajando ao mesmo tempo. Comecei a vender viagens no Facebook e fazia tudo; não tinha uma agência por trás. Entre fevereiro de 2015 e outubro de 2016, trabalhei sempre sozinho e entretanto comecei a adicionar pessoas. Aquilo que no princípio era para ser algo só para mim acabou por chegar a um ponto em que temos mais de 30 pessoas ligadas, após quase oito anos, à Landescape. Agora já somos uma agência de viagens no Turismo de Portugal.
Poderia ter criado uma agência que só vendesse pacotes, mas aquilo que me fez criar uma agência de viagens foi acreditar que as pessoas têm de experimentar viajar; ou seja, as pessoas com a Landescape não vão passar férias, vão viajar. Eu acreditava que as pessoas tinham de ir para a Índia, mas tinham de viajar nos comboios e de comer com as mãos. Tinham de ir para a Guatemala, mas tinham de andar no chicken bus, onde há animais por todo lado e pessoas com tudo às costas. Tinham de ir para Marrocos ou para o Irão, mas tinham de conhecer as pessoas e andar no deserto. Tentei que os viajantes tivessem o maior contacto possível com os locais. É por isso que digo que as pessoas aqui não só viajam; elas tocam nas pessoas.
“Poderia ter criado uma agência que só vendesse pacotes, mas aquilo que me fez criar uma agência de viagens foi acreditar que as pessoas têm de experimentar viajar; ou seja, as pessoas com a Landescape não vão passar férias, vão viajar”
Como é que introduzem a vertente da sustentabilidade? De que forma é que estas práticas sustentáveis influenciam a experiência dos viajantes?
Sou vegetariano há 26 anos e faço-o por respeito aos animais, mas também pela sustentabilidade, e isso é uma coisa muito difícil de se trazer para uma agência quando, por exemplo, usamos o avião e outros transportes que poluem. Eu não posso pensar que vou fazer tudo ‘zero’; tenho de fazer de forma que reduza o meu impacto no ambiente, que aumente positivamente o meu impacto nas comunidades locais, que não utilizemos os animais nas nossas viagens, que utilizemos transportes públicos e não transportes privados, que comamos e durmamos em restaurantes e alojamentos que pertencem a famílias locais para que o dinheiro fique no país.
Tentamos que os líderes de viagem que contratamos sejam conhecedores dos locais para onde vão e que tenham amigos nestas comunidades. Por exemplo, quando vou ao Irão, muitas vezes levo as pessoas a jantar ou almoçar em casa da que eu chamo a minha família iraniana. Levo as pessoas a dormir em casa de amigos meus. Levo-as a passar um serão em volta de música em casa de pessoas que conheço. Isto faz com que as pessoas que vão comigo também se sintam únicas, ou seja, vão ter uma experiência que mais nenhuma pessoa no mundo vai ter. Tentamos sempre criar e encontrar atividades, tours, alojamentos, em que as pessoas nos conhecem e em que nós conhecemos as pessoas.
Também desenvolvemos muitos trajetos. Por exemplo, há dois anos, o Diogo [colaborador da Landescape], que tratava da Guatemala, desenvolveu o trajeto Caminho de El Jaguar. É um trilho no meio da selva durante três dias, que era só conhecido pelos locais, e o Diogo desenvolveu quase um tour turístico muito reservado, em que estas comunidades podem ganhar algum dinheiro com o turismo. São as próprias pessoas que vivem ali – e não guias turísticos – que acabam por fazer este Caminho de El Jaguar, ou seja, é um trilho que se faz de uma maneira muito sustentável. É esta forma de desenvolver produtos, desenvolver tours, desenvolver projetos que sejam nossos e que vão servir os nossos viajantes, mas que sirvam ao mesmo tempo as comunidades locais e que reduzam também o impacto da poluição.
Muitas vezes, as próprias comunidades acabam por não ter maneira de reutilizar ou reciclar o lixo. Na nossa viagem ao Nepal, por exemplo, quando começamos a fazer o trekking, o líder dá a cada pessoa um saco onde sugerimos colocar todo o lixo produzido durante a viagem. No início, as pessoas comem três pacotes de bolacha e bebem duas Coca-Colas, mas, quando começam a carregar o lixo, começam logo a reduzir. Esta maneira de as pessoas pensarem a sua forma de fazer turismo é uma coisa muito engraçada, porque acabam por carregar às costas o lixo que produzem. São estes pequenos detalhes que nós tentamos trabalhar com as pessoas.
Como é que o perfil do viajante tem evoluído? Sentem uma maior procura por viagens com uma maior consciência ambiental?
Temos aqueles clientes que vêm fazer uma ou duas viagens da Landescape, e esses ainda não tivemos tempo de ‘formar’. Nas pessoas que viajam connosco há mais tempo, começamos a perceber que há coisas que elas já deixaram de fazer. Por exemplo, o simples facto de levarem a casa às costas para viajar – uma mala de 23kg, mais uma mala de cabine, mais a mochila –, depois de viajarmos com elas, já começam a levar uma mala de 7kg e uma mochila. A redução no impacto ambiental é muito grande, com o peso que gera no avião e mais veículos a circular.
Começamos a perceber que vão reduzindo e dizem-nos mesmo: “Fui viajar com vocês e percebi que não era preciso tanta coisa para viajar” ou, quando mudam de hotel, “Já levo o sabonete que utilizei no hotel anterior para o hotel seguinte, vou gastar apenas este e já não preciso de abrir um novo”. São estas pequenas coisas que nós vemos nos nossos viajantes de há mais anos. Notamos a não utilização de sacos plásticos, por exemplo, e levam invés um tote bag. Eles próprios comunicam uns com os outros e já são eles a passar estes conselhos.
E qual é o perfil dos clientes da Landescape?
99% das pessoas que viajam connosco são portuguesas, independentemente se vivem em Portugal ou não. O perfil deste tipo de agências de viagens é muito mulheres. Pode dizer-se que 80% dos clientes da Landescape são mulheres. A maior parte dos nossos clientes anda na casa dos 45 aos 65 anos e, dependendo da viagem, aparece um público mais jovem, como para a Índia ou para a Guatemala. Se forem viagens culturais, como Irão e Omã, já puxam um público a partir dos 45 anos para a frente, que não gosta tanto de atividades radicais ou de andar sempre de um lado para o outro, mas sim de conhecer a cultura e a história.
Curiosamente após o Covid, as pessoas decidiram que vão arriscar nestas viagens e, no final, dizem: “Isto é que tem a ver comigo”. Mas muita gente diz que isto não tem nada a ver com elas porque andam descalças, comem com as mãos, andam no meio de autocarros e comboios indianos, e nós compreendemos que não é o nosso público.
Atualmente, a Landescape oferece mais de 40 destinos. Quais são os mais populares e os seus principais fatores atrativos?
A Landescape tem destinos que basicamente sustentam a nossa estrutura e que considero que são os mais populares. Viagens como o Irão, Guatemala, Índia, Peru e Sudeste Asiático são viagens que vendem muito. Nós tentamos fugir ao máximo do turismo e fazer coisas únicas, mas são viagens que sustentam a empresa.
Depois temos aquelas viagens em que queremos que as pessoas arrisquem e, às vezes, andamos anos para juntar um grupo de seis ou sete pessoas. São o Cáucaso, a Geórgia e Arménia, também a Colômbia e a Bolívia.
Por fim, temos aquelas que fogem ao comum das viagens, que é, por exemplo, o Omã. Já ouvimos falar do Omã, mas nem sabemos bem onde é que aquilo fica. É também o Paquistão e as Montanhas Malditas, que é um trekking que fazemos na Albânia e em Montenegro. Temos destinos que queremos que fujam completamente àquilo que é o destino comum que as pessoas procuram, como a ilha de Socotra, no Iémen, e o Tajiquistão. São destinos que sabemos que são mais duros a nível físico e psicológico, em que, em sete dias, há apenas um dia de hotel e o resto é acampar com tudo às costas.
Portanto, temos os destinos evidentes e os destinos que não são mesmo nada evidentes. Às vezes é surpreendente como enchemos os destinos fora do comum de um momento para o outro, como é o caso da Argélia, e destinos que são muito evidentes para nós, como o Sri Lanka na passagem de ano, e não conseguimos esgotar.
Têm destinos muito variados e alguns deles não são regiões de muito fácil acesso. Quais são os maiores desafios na logística e planeamento de viagens?
Posso dar um exemplo muito concreto. A ilha de Socotra tem um voo que parte de Abu Dhabi à terça-feira e volta para Abu Dhabi numa terça-feira. É um voo que é humanitário e não comercial. Se o voo não levantar, as pessoas têm de esperar uma semana para regressar. Portanto, isto é um grande ‘senão’ quando se faz uma viagem.
Temos, por exemplo, destinos em África, em que é o líder que conduz o camião e, se houver algum problema com o veículo, as pessoas têm de parar ali. Com o último grupo com que viajámos, em agosto, para Pamir Highway, no Tajiquistão, houve uma derrocada na montanha e o jipe teve de parar durante quatro horas, sob 40 graus. Por acaso havia uma cascata ali ao lado e as pessoas foram todas tomar banho. As próprias pessoas que viajam connosco têm de perceber que este tipo de coisas pode acontecer. Às vezes temos de esperar por ajuda porque nem rede nem internet temos. E é por isso que há viajantes que dizem que este tipo de viagem não é para eles, porque estão habituados a viajar de uma forma muito planeada.
Já houve alturas em que, na Índia, América Latina e África, o compromisso é diferente daquilo que é na Europa. Temos de telefonar à mesma pessoa 30 vezes para nos certificarmos de que a reserva está marcada. Já aconteceu chegarmos ao destino, não estar marcada, o hotel estar cheio e termos 13 pessoas para dormir que estão cansadas. É aí que o líder tem de ter uma capacidade de gestão muito grande para correr a cidade toda e desenrascar isto.
Temos tudo muito controlado; 95% das nossas viagens estão planeadas, mas há 5% que pode falhar, e falha muitas vezes. Tem de haver resiliência e vontade das pessoas. É a experiência que contam quando voltam para Portugal, e acho que isso fica muito marcado nos viajantes.
“Temos destinos que queremos que fujam completamente àquilo que é o destino comum, como a ilha de Socotra, no Iémen, e o Tajiquistão”
Quais são os principais critérios para a escolha dos destinos e das atividades que organizam?
Os destinos desdobram-se muito com base no que as pessoas nos pedem. Um exemplo é uma viagem que temos à Islândia de uma forma mais cultural, em que as pessoas andavam de carro e parávamos em certos sítios para os visitar, como uma cascata ou um glaciar. Depois, decidimos passar a oferecer também uma viagem de trekking, em que as pessoas têm um dia em Reykjavik e dormem num hotel, e a partir daí são cinco ou seis dias no meio da neve. Portanto, há a viagem para as pessoas que querem fazer trekking e a viagem para quem procura a parte cultural. Tentamos sempre encontrar uma forma mais democrática de organizar as viagens que seja acessível a todos.
Quais são os destinos que vão lançar num futuro próximo, ou que estão a despertar a vossa atenção?
Um destino que vamos ter no próximo ano é a Patagónia, na Argentina, e acredito que vai correr muito bem. Decidimos fazer uma viagem que comece em Buenos Aires, com toda a cultura de tango e da noite, depois vamos para outra cidade mais cultural e, por fim, vamos partir para um trekking. As pessoas têm as duas vertentes – cultural e trekking – na mesma viagem.
Existem vários destinos que gostávamos de ter e vamos começar a trabalhar neles. Um deles éramos para lançar no ano passado, mas entretanto houve o conflito de Israel, que é o Iémen. O Iémen divide-se em duas partes: a parte sul, que é realmente governada pelo Houthi; e a parte norte, que é defendida por um exército da ONU, e o turismo só é possível fazer-se aí. Em novembro de 2025 vamos lançar esta viagem, dependendo de como o mundo estará nessa altura. É um destino que não tem turismo absolutamente nenhum, em que o património histórico e da UNESCO é surreal, e sei que existe público para isto. Os viajantes também gostam de se sentir exclusivos e de ir a um destino onde é rara a pessoa que vai.
Outro destino que já lançámos e estamos a promover muito é o Paquistão. O norte do Paquistão, o Hunza Valley, é absurdo de beleza, com montanhas e glaciares, e as pessoas associam mais o país à parte sul, onde existem mais problemas sociais e de guerra.
“Viagens como o Irão, Guatemala, Índia, Peru e Sudeste Asiático vendem muito. Depois temos aquelas que fogem ao comum das viagens, como o Omã”
Como é que o mercado português está a responder à vossa oferta turística?
O turismo, neste tipo de agência de viagem, sofreu um boom gigante. Não há um ano em que não subamos as nossas vendas; isto não quer dizer os nossos lucros, mas as nossas vendas. As pessoas respondem de uma maneira muito boa e cada vez arriscam mais, cada vez compram mais viagens. 90% dos nossos destinos esgotam, e também têm havido muitos pedidos de viagens personalizadas. Desenharmos viagens só para uma pessoa é um mercado que está a crescer muito, em que as pessoas nos dizem que têm este dinheiro para viajar para este destino nesta altura, e nós trabalhamos a viagem só para aquela pessoa ou aquele grupo. Em 2023 vendemos quatro viagens destas, em 2024 já vamos em 13 e para 2025 já existem vários pedidos.
Também estamos a apostar muito no mercado de escolas, onde desenvolvemos viagens culturais para escolas secundárias sobretudo, e trabalhamos o aspeto da religião ou da história. Por exemplo, vamos trabalhar a cidade de Cracóvia porque tem campos de concentração, ou Berlim porque teve o muro de Berlim, ou Istambul porque trabalhamos muito o aspeto do encontro das religiões. As crianças ficam a conhecer a cultura local, a religião e a história, e são viagens de estudo em locais completamente diferentes à parte de Londres e Paris, que é para onde a maioria das escolas viaja.
Quais são os próximos passos da Landescape em termos de expansão?
Não tenho a ambição de que a Landescape fature 500 mil euros, um milhão, um milhão e meio. A ambição que tenho é de lançar moderadamente todos os anos dois a três destinos novos, e não mais do que isto. Não quero só vender viagens, até porque vendemos apenas duas ou três datas por ano do mesmo destino, e há destinos que até conseguia vender mais por ano, mas não o faço.
Não tenho uma ambição de ter mais dinheiro, mas sim uma ambição de me espalhar mais a nível de negócio ou de projetos. A Landescape surge como casa-mãe. Temos um apartamento que transformámos onde está o nosso escritório e um espaço para fazer eventos. Temos um espaço de co-working gratuito, em que as pessoas podem vir para cá trabalhar e não pagam nada. Temos uma biblioteca e livraria, e um sítio onde as pessoas podem dormir. Todas as semanas organizamos atividades à sexta-feira ou ao sábado, como a promoção de viagens. Os eventos são todos gratuitos e as pessoas podem participar neles; é a nossa entrega à comunidade.
Queremos muito trabalhar também outro tipo de turismo para lançar no próximo ano, que é o turismo de alojamento. Já adquirimos um edifício onde vamos possivelmente fazer um espaço lá dentro, onde possamos receber pessoas de outra forma. Portanto, é outro negócio dentro da Landescape. Pretendemos também trabalhar parcerias com empresas onde organizemos palestras, como, por exemplo, a nível de empreendedorismo motivacional.
Portanto, não vai ser uma expansão a nível de viagens. Quero que a Landescape seja a casa-mãe, mas que tenha vários átomos e que trabalhemos várias coisas à volta dela.