Eddie Wilson, CEO da Ryanair, disse recentemente que “a Ryanair não tem negócios com agentes de viagens”, colocando assim um ponto final num período de algum entendimento comercial entre a companhia aérea e as agências de viagens que começou em 2014, quando foram disponibilizados os seus voos através de GDS.
Convém recordar que a Ryanair chegou ao final de 2013 com um prejuízo de 35,2 milhões de euros, e que o início de negociações com alguns GDS visava, não só o incremento de vendas de viagens Corporate – mercado que sempre esteve, principalmente, nas agências de viagens -, como desenvolver a sua rede em aeroportos principais, até então demasiado caros para a companhia. Em março de 2014, O’Leary anunciava, com toda a pompa e circunstância, mas sem se referir uma vez que fosse às agências de viagens, o início de uma nova parceria com a Travelport. Coincidência ou não, o lucro da Ryanair cresceu 32% na primeira metade do exercício fiscal concluído a 30 de setembro de 2014 face a igual período do exercício anterior, e esse aumento chegou aos 66% entre março de 2014 e o mesmo mês de 2015, continuando a crescer, com alguns percalços em 2018, até 2020.
Em 2021, aparentemente, voltámos a ser os “parasitas careiros da indústria do turismo”, os “dinossauros em vias de extinção que só acrescentam custos” e a Ryanair assume-se como estando “orgulhosamente só”. Mais uma vez, coincidência ou não, este romper de relações tem permitido à Ryanair não reembolsar alguns (muitos) passageiros que tinham comprado os seus voos através de OTAs e de agências de viagens tradicionais, o que certamente se irá refletir nas suas contas anuais. Esta seria, aliás, uma boa oportunidade para questionar a Comissão Europeia, que foi muito rápida a instaurar processos devido à “lei dos vouchers” (sem a qual muitas agências e operadores teriam declarado insolvência), porque é que ainda pouco ou nada fez em relação ao gritante e descarado incumprimento do Regulamento 261/2004 por parte de várias companhias aéreas, incluído a Ryanair. Mas adiante…
A Ryanair pode ter uma atitude mais “agressiva” para connosco, mas não é a única a desconsiderar o nosso papel e trabalho. Já há muitos hotéis que começam a demonstrar preferência por outros canais de distribuição e pelas vendas diretas. O motivo é simples: anualmente, aumenta o número de pessoas que pesquisam e organizam as suas viagens ou estadias por conta própria, abrindo espaço para que as companhias aéreas e hotéis tenham mais acesso aos consumidores finais, diminuindo-se assim a dependência de intermediários. Depois, há que fidelizar esses clientes, estimulando a compra direta. Como? Investindo nos sites, em ações de marketing digital, em descontos e afins. Ao mesmo tempo, recusam vendas efetuadas por agências de viagens e operadores de turismo, como se o mercado estivesse a atravessar uma fase tão espetacular que até se podem dar ao luxo de o fazer, para não terem que pagar comissões ou dar crédito. Mas, até aqui, tudo bem – cada um vende o que quer, como quer, e a quem quer. O problema começa quando, de repente, passam a disponibilizar nos seus sites outros serviços para além dos seus: dos voos ao alojamento, passando por transfers, rent-a-car, visitas guiadas, etc. Ou seja, passam a vender viagens organizadas sem serem uma agência de viagens ou operador de turismo.
E é aqui que a porca torce o rabo.
Nenhuma companhia aérea ou hotel tem a nossa experiência, conhece verdadeiramente o perfil do cliente, fornece toda a informação acerca dos documentos necessários para viajar, incluindo vistos, vacinas, testes, autorizações ou seguros de viagem adequados, nem se traduz num contacto único, seja qual for e com quem for o problema, antes, durante ou depois da viagem.
E, se mais razões fossem necessárias, temos o mal-amado Decreto-Lei 17/2018, que pode até ser o nosso melhor amigo nesta altura. Porquê? Porque o Decreto-Lei, ao qual as agências de viagens e operadores estão obrigados, garante aquilo que nenhuma companhia aérea ou hotel pode garantir: a responsabilidade e responsabilização pela correta execução da globalidade da viagem organizada, o reembolso integral de qualquer pagamento efetuado em caso de alteração significativa de algum dos elementos essenciais da viagem organizada, ou de cancelamento por circunstâncias excecionais suscetíveis de afetar a viagem ou até de insolvência da agência de viagens / operador de turismo, e a obrigatoriedade de prestar assistência sempre que um viajante estiver em dificuldades.
O preço é importante? Sem dúvida. Mas a confiança e a segurança não têm preço, e numa altura como esta, com alterações diárias de requisitos de entrada nos diversos países, abertura e encerramento de fronteiras, desaconselhamentos e afins, as agências de viagens e os operadores turísticos oferecem aos seus clientes serviços e garantias que nenhuma companhia aérea ou hotel consegue per se.
Acrescentamos custos? Em alguns casos, sim, mas que se traduzem em informação, qualidade e responsabilidade. E é por isso que o Clube Viajar decidiu deixar de vender Ryanair, como também algumas unidades hoteleiras – conseguimos trabalhar depressa e bem, mas não trabalhamos de borla, muito menos para quem não nos respeita e, em última análise, não respeita os nossos clientes.
Se Eddie Wilson diz que “a Ryanair não tem negócios com agentes de viagens”, nós respondemos parafraseando saudoso Vasco Santana na Canção de Lisboa: “Chapéus há muitos, seu palerma!”.
Por Augusto Morais, diretor geral do Clube Viajar Lufthansa City Center.