O hotel de todas as horas
Por Jorge Mangorrinha*
Ao percorrer a avenida mais luxuosa de Lisboa, há um hotel que, notavelmente, traduz o empreendedorismo de há um século. Na época, uma dupla de investidores arregaça as mangas para criar uma marca hoteleira que corre mundo. Nos seus primeiros tempos, o Tivoli salta a avenida de um lado para o outro e transforma-se de uma modesta pensão para um hotel, adaptando um prédio de esquina com três andares. É inaugurado no último domingo do inverno de 1933, ano fundador do Estado Novo em Portugal. Duas décadas depois, esse edifício é substituído por um outro, numa época de arranque do turismo moderno e no qual lemos traços de modernismo. Presentemente, o Tivoli Avenida Liberdade Lisboa Hotel faz parte da Tivoli Hotels & Resorts, detida pela Minor Hotel Group. “Tivoli” é a marca de nove unidades em Portugal, duas no Brasil, três no Catar e uma na China, nos Países Baixos, na Itália e em Espanha, além de que integra a Global Hotel Alliance, que agrupa 40 marcas hoteleiras no mundo. Este é um caso de sucesso, que a história tão bem documenta.
Para quem chega pela primeira vez a este hotel é fácil encantar-se com a sequência do que vê – a fachada modernista, os funcionários à porta impecavelmente fardados, os painéis sobre Lisboa em estuque esgrafitado da autoria do desenhador, poeta e engenheiro Risques Pereira e o imponente “hall” traçado pelo arquiteto Porfírio Pardal Monteiro. O ritual do cliente inicia-se – liberto e dando tempo ao tempo.
Na hora do “check-in” feito por Lourenço Miranda – e na presença do diretor geral, João Prista Von Bonhorst, que teve a amabilidade de me apresentar as boas-vindas –, lembrei-me de uma fotografia antiga em que se vê um rececionista no balcão do hotel e, ainda, o telefone, o cinzeiro e o antigo chaveiro de parede. A fotografia está marcada com a assinatura da casa fotográfica Estúdios Nova Goa, que funcionou nas décadas de 60 e 70 do século passado, em Lisboa. Com um ar aprumado, aquele antigo rececionista bem pode simbolizar a forma como, ainda hoje, se recebe cada cliente. O Lourenço faz parte de uma geração de jovens formados que asseguram o futuro da hotelaria portuguesa. A propósito, não deixo de referir a grata satisfação pessoal de ver os meus antigos alunos no contexto da hotelaria mais sublime. No caso deste hotel, temos Pedro Espinheira, Ricardo Duarte e Vera Catana, perfeitamente integrados na operação.
Feito o “check-in”, curioso foi verificar que em todos os pisos há um relógio antigo a encimar cada par de portas dos elevadores. Quem espera a chegada destes transportadores do sobe-e-desce confronta-se com horas diferentes de piso para piso. À primeira vista, pensei que estava avariado apenas o relógio do piso do quarto que me coube, mas a curiosidade levou-me a confirmar, em cada um dos pisos, que todas as horas são diferentes. Estes relógios representam a metáfora que confere a este hotel um epíteto original. Não importa mesmo se a hora de cada um dos relógios seja díspar. O que importa é que, por essa e outras razões, o Tivoli Avenida Liberdade é de todas as horas.
Inaugurado na tarde de 19 de março de 1933, o primitivo hotel materializava a determinação e a iniciativa de dois jovens beirões de Almaceda, radicados em Lisboa: o industrial José Francisco Cardoso e o advogado Joaquim Gonçalves Machaz. A mais recente unidade hoteleira da capital dava continuidade à experiência empresarial anterior, com uma pensão localizada no outro lado da Avenida da Liberdade, a Pensão Tivoli, com instalações com todas as comodidades modernas e higiene, água corrente, um serviço de cozinha doméstica e pura, uma casa de toda a responsabilidade e muito sossego, tal como era descrita na época. Em 1923, José de Sousa Braz, proprietário e mestre de obras, apresentara na Câmara Municipal de Lisboa um requerimento para construir, em terreno próprio, um prédio com subcave, cave, r/c e quatro andares superiores. Na época, estava em construção o Cine-Teatro Tivoli, inaugurado a 30 de novembro de 1924, cujo nome terá sido inspirado nos exuberantes Jardins e Palácio Villa d’Este, na localidade de Tivoli, e talvez, também, no parque de diversões Jardins de Tivoli (inaugurado em 1843), em Copenhaga, e que, por sua vez, inspirou o nome da Pensão contígua (aberta em 1926).
Os promotores hoteleiros queriam algo mais do que apenas uma Pensão. Esta atingiu os seus limites de capacidade no início da década seguinte. Decidiram avançar para o outro lado da Avenida, juntando António Duarte Martins ao negócio. Com o novo investimento, não se pretendia sumptuosidade e luxo, “como qualquer ‘Negresco’ de Nice, nem, tampouco, um hotel enorme e babilónico como o ‘Pensilvânia’ de New York” (Carta dirigida aos clientes por parte da Gerência do Hotel Tivoli e da Pensão Tivoli a 18 de março de 1933). Localizado no antigo palacete que fora da atriz Rosa Damasceno e sob projeto do arquiteto Joaquim Norte Júnior, o primeiro Tivoli ficou dotado com 45 quartos (com aquecimento e telefone), sala de jantar para 120 pessoas, um jardim interior, bar, salão de jogos, telefonia, cabeleireiro e elevador. Dos quartos, só oito tinham banheiro, o que lhe deu o título de “hotel de segunda categoria”, pois um a mais tê-lo-ia elevado à primeira. Uma diária custava entre 35 e 100 escudos, para “todo o conforto moderno”. A primeira unidade hoteleira da mais importante artéria da cidade foi não só importante para quem se alojou como para muitos que deambulavam por diferentes hotéis da capital portuguesa, desde gente relacionada com espionagem durante a Guerra Civil de Espanha e a II Guerra Mundial à boémia lisboeta associada aos botequins e ao teatro.
Em 1941, os sócios já tinham em vista adquirir o palacete adjacente e iniciar a construção, em duas fases, para um grande hotel moderno de 1ª classe, com capacidade para mais de 300 quartos. A terminar o ano de 1944, negociaram com António Duarte Martins a cedência das suas quotas na empresa Duarte, Cardoso & Machaz, Lda, que, porém, foi extinta pouco tempo depois. Nesse mesmo ano, iniciaram os contactos com o arquiteto Porfírio Pardal Monteiro, para que este desenhasse o novo hotel. O pedido de licenciamento apenas obteria aprovação na década seguinte. A versão final do projeto foi entregue nos serviços camarários no dia 24 de maio de 1954 e aprovado em janeiro do ano seguinte. É nesta altura, também, que os dois sócios aceitaram o convite para assumir a exploração do Palácio de Seteais, em Sintra, concessionado pelo Estado por um período de trinta anos, facto que assinala o nascimento do Grupo Hotéis Tivoli.
A 1 de julho de 1957 abriu a primeira fase do novo hotel, com um edifício moderno. Aos 80 quartos em exploração juntaram-se 151 novos alojamentos distribuídos por oito pisos e encimados por um terraço com restaurante e danceteria por sugestão de César Moreira Baptista, Secretário Nacional de Informação. A segunda fase abriu a 1 de abril de 1961, curiosamente no mesmo dia em que Amália Rodrigues voltou do Brasil para preparar o seu casamento. Nessa noite, passou no Cinema Tivoli um filme cujo título até parece que fazia referência à novidade do outro lado da Avenida: “A Casa Encantada” – a expressão máxima do suspense, tal como era promovido o filme de David O’Selznick, dirigido por Alfred Hitchcock, com Ingrid Bergman e Gregory Peck.
António Pardal Monteiro e Anselmo Fernandez foram os arquitetos do empreendimento, porque Porfírio Pardal Monteiro já falecera. O hotel tomou a planta em U composta por três corpos adossados, sendo o primeiro de pé direito duplo por constituir a zona comum, com cobertura envidraçada, à semelhança de Le Grand Hôtel de Paris, que fora visitado por Joaquim Machaz.
Com este novo impulso, os seus proprietários expandiram o conceito hoteleiro e consolidaram a aquisição de obras de arte. Impressionante é a coleção de quadros da pintora Mily Possoz, portuguesa de origem belga nascida nas Caldas da Rainha, que, depois de uma temporada em Paris, recebeu a encomenda de Joaquim Machaz para a execução de uma centena de pinturas que decoraram durante anos o Hotel Tivoli, e algumas ainda se veem nas galerias públicas e nos quartos, nomeadamente na Suíte Presidencial. Esta coleção é constituída por uma galeria de figuras femininas em trajes regionais portugueses, paisagens de Sintra, motivos florais, designadamente.
O Hotel Tivoli é um caso de estudo do ponto de vista da história empresarial, aspeto complementado pela componente social, pelos sonhos, pela entrega à causa por parte dos seus funcionários, pelo “glamour” e pelos inúmeros hóspedes famosos, e outros menos conhecidos mas também importantes, que têm levado o nome “Tivoli” a muitas partes do mundo. Todos são estrelas deste firmamento, como que a pairarem no céu do Sky Bar by Seen e do Seen Lisboa, que têm a assinatura do “chef” Olivier da Costa e são localizados no “rooftop”, com uma vista soberba da cidade – do Castelo à colina do outro lado, tendo o Tejo como fundo. Foi neste espaço que usufruí de um final de tarde e de um “drink” por cortesia de Andrea Granja, diretora de Relações Públicas e Comunicação do Tivoli Hotels & Resorts. Tive a sorte de coincidir esta estada com a presença da banda The Brothers, absolutamente incrível de qualidade musical e interpretativa.
A propósito, só na nossa imaginação podemos admitir que tantas figuras ilustres possam constituir uma irmandade histórica em volta deste hotel, não fora sabermos das profundas divisões ideológicas entre si, tal como enumerou Filipa Ferreira, gestora de Marketing e Comunicação do hotel, na conversa que tivemos durante a visita guiada que me proporcionou. E lembrou que nunca viu tanta gente à entrada do hotel como naquela circunstância em que a equipa de futebol do Real Madrid, com Cristiano Ronaldo, jogou em Lisboa e ficou hospedada no Tivoli.
Há uma hóspede, porém, que domina na história deste hotel: a atriz Beatriz Costa, que viveu durante quase três dezenas de anos no quarto 600 (atual 430) e foi a grande embaixadora da marca de 1967 a 1996, ano da sua morte, a 15 de abril, precisamente no quarto do Tivoli. Desses tempos, são lembrados, também, a cantora Madalena Iglésias e o pianista-residente Jorge Machado, por exemplo.
Durante o primeiro dia de estada no quarto 230, que forma gaveto e tem duas esplêndidas varandas, escrevi apontamentos para este texto com uma esferográfica de ponta de cristal, sucedânea da inventada pelo barão ítalo-francês Marcel Bich, que se hospedou no Tivoli antes de rumar aos Estados Unidos da América para lançar no mercado norte-americano a então revolucionária “Bic”. Num bloco de notas do hotel, registei por exemplo a afabilidade de Pedro Santos, na apresentação da ementa de um jantar que foi iniciado com uma prova de ostras com três origens (Algarve, Aveiro e Setúbal), absolutamente deliciosas. A Cervejaria Liberdade nasceu onde havia a Brasserie Flo e, antes, o Restaurante O Zodíaco, de que permaneceram os candeeiros, bem como a fabulosa tapeçaria desenhada pelo pintor francês Jean Lurçat, saída das manufaturas de Portalegre e intitulada “Zodíaco”. Tal como os relógios referidos, esta cinta imaginária também tem a ver, metaforicamente, com o tempo dos dias, dos meses e dos anos em que o funcionamento deste hotel se tem desenvolvido.
No Lobby Bar, presenciei pequenos grupos de casais e, ainda, homens e mulheres de negócios, em conversação, num ambiente tranquilo, onde se vê quem passa e nos deixamos ver. À despedida, na receção, senti a mesma delicadeza que já sentira à chegada. Neste hotel, em que os relógios não acertam no tempo, mas ele está bem presente na constelação do zodíaco, o espaço conta – e muito –, porque é precioso. Talvez um dia venha a ser tão livre como o espaço etéreo que tem dominado a história e em que se projeta o futuro deste hotel de 5 estrelas, que “é um amor” segundo o testemunho da pintora Maria Helena Vieira da Silva. Localizado no centro mais sublime da cidade de Lisboa, este padrão da modernidade é, verdadeiramente, o espaço e o tempo tornados sensíveis ao coração.
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*Jorge Mangorrinha é pós-doutorado em Turismo, doutorado em Urbanismo, mestre em História Regional e Local (especialização em Património) e licenciado em Arquitetura. Autor multifacetado recebeu o Prémio José de Figueiredo 2010 da Academia Nacional de Belas-Artes. Com experiência no planeamento turístico, em Portugal e no estrangeiro, exerceu, também, como gestor técnico na Parque Expo’98 e como presidente da Comissão Nacional do Centenário do Turismo em Portugal (1911-2011). Colabora com o TNews, tendo sido o autor da rubrica “A Biblioteca de Jorge Mangorrinha”, a que se segue “Há História no Hotel” durante 12 crónicas.