A desenvolver neste momento cerca de 20 projetos hoteleiros, a Saraiva+Associados (S+A) não sentiu uma retração do mercado por causa da pandemia. O setor hoteleiro representa 20% dos projetos do maior atelier de arquitetura do país, o que é “imenso” para um atelier que se ocupa em 40% com projetos na área residencial. Nem sempre foi assim, os hotéis começaram a ganhar peso na S+A a partir de 2016. Foi preciso ganhar know-how, conta o arquiteto Miguel Saraiva, em entrevista ao TNews. Hoje, considera que o gabinete tem muito “know-how instalado”, fruto do trabalho com diferentes operadores, nacionais e internacionais. Atualmente, estão a desenvolver o projeto de reposicionamento dos Hotéis Real, comprados pela Palminvest, mas também o Verdelago, um megaresort que vai nascer entre Altura e a Praia Verde.
Atualmente, quantos projetos hoteleiros estão em desenvolvimento no atelier?
Só em Portugal, entre projetos em obra, licenciamento ou em ideia, temos aproximadamente 20 de dimensão considerável, acima de 100 quartos, sendo o máximo de quartos de 250 a 300. Estes projetos situam-se maioritariamente no Algarve e em Lisboa. No Porto, temos dois hotéis. São projetos de investimento estrangeiro. Nestes 20 projetos, mais de 50% são investidores estrangeiros que operam o seu património sobre bandeiras internacionais e que continuam os projetos e acreditam que os investimentos vão ter retorno.
Esse peso manteve-se durante a pandemia ou notou um abrandamento do mercado?
Não notamos um abrandamento, porque os investimentos na área de hotelaria são bastante consideráveis. Os hoteleiros que têm procurado o atelier Saraiva+Associados para desenvolver os seus projetos têm uma massa crítica muito grande e, por isso, têm capacidade financeira para prosseguir com os seus projetos, independentemente se estes abrem este ano ou daqui a um ano e meio. Por isso, não tivemos abrandamento do trabalho nessa área, tivemos até algumas encomendas. É natural que, dentro de dois ou três anos, venhamos a sentir o impacto da pandemia na arquitetura. Não o sentimos hoje, mas vamos sentir obrigatoriamente, pelo menos em Portugal ou em mercados similares ao português.
“Só em Portugal, entre projetos em obra, licenciamento ou em ideia, temos aproximadamente 20 de dimensão considerável”
Qual o perfil dos clientes na hotelaria no atelier Saraiva+Associados?
Temos três tipos de clientes. O cliente que procura fazer um design hotel. Neste caso, hotéis até 50 quartos. Normalmente, são estrangeiros que mudaram a sua residência para Portugal e fazem este tipo de investimento, porque consideram muito interessante e gostam de desenvolver um conceito de hotel que é quase como uma casa onde recebem as pessoas. Estão muito virados para a cultura nacional e para vender essa cultura aos mercados de origem dos mesmos. Depois, temos o perfil de hoteleiro nacional tradicional que desenvolve hotéis entre os 100 e os 150 quartos. São hoteleiros de famílias e que têm uma ligação geracional à hotelaria. Por fim, temos o cliente estrangeiro que traz uma marca associada internacional e que olha para o mercado nacional como um mercado de massas e, por isso, investe em duas vertentes: no património e na marca. Hoje em dia, é interessante ver que [estes clientes] têm o património parqueado num fundo, têm a marca como bandeira e têm a gestão nacional. Esta terceira vertente é um reconhecimento que hoje existem marcas portuguesas a fazer a gestão – quase como se fossem marcas brancas – , que podem fazer a gestão de marcas internacionais. Penso que é inovador para o nosso mercado. Isso tem sido interessante, porque é mais fácil para o arquiteto desenvolver um projeto tendo uma gestão nacional do que ter uma gestão internacional.
Porquê?
Porque há influências culturais que também entram na hotelaria e é muito mais fácil compreender o que querem. É diferente operar um hotel em Paris do que em Madrid ou em Lisboa. Até porque os mercados são completamente distintos, apesar de estarmos a falar da Europa. Por isso, quando as marcas internacionais procuram uma gestão profissional portuguesa, temos mais facilidade em desenvolver o produto.
Como é o processo de criação do projeto? Os hoteleiros interferem muito no projeto?
Adoram [interferir]. Costumo dizer que cada hoteleiro é quase como um chef. Todos os chefs trabalham dentro de cozinhas, mas cada um tem a sua cozinha. Mas o hoteleiro tem uma coisa interessante. O hoteleiro que é muito estruturado, fá-lo de uma forma piramidal: identifica o local, escolhe o conceito, vai buscar o arquiteto para responder a esse conceito e soma a esse arquiteto o interior design, que pode ser do arquiteto ou não. Depois, começa a desenvolver o conceito com o seu diretor de operações e com o arquiteto. Isto é uma pirâmide que, quando é muito bem estruturada, o sucesso do hotel é muito maior. Nós, arquitetos, que somos muito proprietários da ideia, temos que ter a humildade de saber que não somos hoteleiros, mas um hoteleiro também tem que ter a humildade de saber que não é arquiteto. É difícil para ambos ter essa postura. Mas se ambos recuarem um bocadinho no seu métier e permitirem a entrada no campo de trabalho de cada um, é possível fazer algo extraordinário. Mas, naturalmente, quem encomenda influencia imenso o trabalho.
“é mais fácil para o arquiteto desenvolver um projeto Hoteleiro tendo uma gestão nacional do que internacional”
Qual o maior desafio que o atelier tem agora entre mãos?
O maior desafio, neste momento, são os Hotéis Real, porque os novos proprietários querem dar-lhes um boost distinto, diferenciador e reposicioná-los no mercado. Têm ideias muito próprias. Estamos a desenvolver não só o reposicionamento de alguns hotéis no Algarve, como também em Lisboa. Nesse aspeto, está a ser um desafio extraordinário. Talvez seja o operador e proprietário do qual temos mais trabalho atualmente dentro do atelier. Estamos a falar de remodelar mais de 1000 quartos. Vamos reposicionar os edifícios, na sua imagem e no seu conceito. E, depois, também no design de interiores.
O design de interiores também é do vosso atelier?
Alguns são nossos, outros em parceria com designers de interior internacionais. Estão em fase de fecho de contrato, mas serão sempre arquitetos ou designers de interiores que vão acrescentar valor ao nosso trabalho, aos hotéis e às cidades onde vão atuar. Os proprietários dos Hotéis Real estão muito focados em trazer muita qualidade ao seu património hoteleiro.
Qual é o deadline para estes projetos?
Penso que nos próximos três anos isto tudo irá acontecer. São investimentos de grande escala, de montantes muito elevados, mas penso que, sendo a Palminvest uma empresa muito estruturada, está a desenvolver estes ativos de uma forma muito organizada e com conceitos muito direcionados. O conceito é trazer qualidade. Acreditamos que a qualidade é o único catalisador que perpetua o negócio. Os hoteleiros com que estamos a trabalhar, e os Hotéis Real especificamente, estão muito focados na qualidade do produto e do serviço. Por isso, julgam que vão perpetuar as suas marcas através desse catalisador que é a qualidade.
Que outros projetos têm entre mãos?
Estamos a fazer três hotéis Moxy: um em Gaia, um em Lisboa e outro na Amadora para proprietários distintos, mas todos sob a mesma bandeira.
Quem são os proprietários?
São desde investidores austríacos, canadianos e investidores nacionais. São proprietários e gestores completamente distintos e de geografias distintas e culturas diferentes. Para o fundo Sete Colinas, estamos a fazer um segundo Curio Collection by Hilton, que vai abrir agora nas Janelas Verdes, em Lisboa, The Emerald House. Todos investidores italianos, com interior design em ambos os casos Saraiva+Associados. São dois hotéis da cadeia Hilton. Vamos inaugurar em janeiro e fevereiro do próximo ano e estamos a iniciar o processo de um novo. Ambos muito bem localizados nas zonas históricas de Lisboa. Estamos a falar de hotéis que andam entre os 100 quartos.
“Nós, arquitetos, que somos muito proprietários da ideia, temos que ter a humildade de saber que não somos hoteleiros, mas um hoteleiro também tem que ter a humildade de saber que não é arquiteto”
O atelier está também a desenvolver o empreendimento de luxo Verdelago Resort entre Altura e a Praia Verde. O que pode adiantar sobre esse projeto?
O Verdelago é um mega resort que vai ter bandeira e gestão da Marriott. Estamos na fase de projeto. Já temos uma fase em obra que é parte residencial. Brevemente vai arrancar a segunda fase, porque as vendas estão a correr lindamente. Julgo que há vontade de arrancar com as obras do hotel no fim deste ano.
Este projeto é muito interessante e tem sido um desafio extraordinário para nós. Estamos a requalificar um projeto que já tinha 20 anos e fazer novas infraestruturas, aumentando a qualidade do espaço público e redirecionando toda a parte imobiliária e turística para um produto de qualidade 5 estrelas.
É um projeto único no Algarve, na minha opinião, principalmente porque é um projeto de pé na areia. Vamos ter sete quilómetros de passadiços que tanto estão à quota das copas das árvores, como estão na parte de baixo. Vai ter um centro de observação de pássaros, inserido também no projeto. Tem a belíssima Praia Verde, que é extraordinária, e precisava de um cinco estrelas desta qualidade. Penso que será, não só um marco para o concelho de Castro Marim, mas um marco para todo o Algarve. Até porque, julgo que o que estamos a fazer é algo diferente do que foi feito anteriormente, pegando naquilo que se fazia bem e corrigindo aquilo que se fazia menos bem. Além disso, estamos a fazê-lo de uma forma muito mais respeitosa em relação ao ambiente. Por exemplo, prescindimos de uma das âncoras que estes projetos tinham naturalmente, que era o campo de golfe, porque julgamos que não acrescentava valor a este empreendimento.
“O Verdelago é um mega resort que vai ter bandeira e gestão da Marriott”
A qualidade da arquitetura pode encontrar-se em hotéis de três, quatro ou cinco estrelas?
Temos projetos que vão de três a cinco estrelas. Penso que a Europa naturalmente desconsiderou as estrelas. As estrelas serviam para classificarmos o desconhecido. Hoje em dia, nada é desconhecido na Europa. As estrelas fazem muito sentido fora da Europa, em países menos desenvolvidos, para minorar o risco de se fazer uma escolha errada num destino de férias ou trabalho. Na Europa isso desapareceu. O que a Europa vive é de experiências e de serviços. A mim não me interessa ter um hotel de cinco estrelas com um péssimo serviço quando posso ter um três estrelas com um ótimo serviço. Hoje, o que as pessoas procuram é, acima de tudo, uma experiência, porque um hotel é um hotel em qualquer parte do mundo. Tem uma zona social, de business e uma zona privada que são os quartos. Se não trouxermos algo diferenciador a esses equipamentos, as pessoas estão ali como podiam estar noutra parte do mundo. Por isso, julgo que os hotéis vivem daquilo que podem oferecer aos seus clientes em termos de experiência e do serviço que lhes podem dar. De certa forma, as estrelas estão lá como referência, mas não creio que sejam um elemento diferenciador na escolha de quem visita a Europa e Portugal. Temos hotéis rurais que oferecem uma experiência extraordinária e única num meio rural muito melhor do que alguns cinco estrelas em Lisboa ou Porto.
Temos hotéis cinco estrelas, por exemplo em Évora que oferecem uma experiência única comparativamente com cinco estrelas que estão na cidade e é isso que as pessoas procuram. Hoje o hotel não se encerra em si próprio, tem que estar inserido na comunidade. Isto quer dizer que, se tivermos um hotel cinco estrelas sem nada à volta, esse hotel esgota-se em si próprio. Por isso, o hotel hoje tem de estar de portas abertas à comunidade e a diferentes operadores de outras áreas da mesma economia. Isso faz com que se faça o destino. O hotel antigamente fazia o destino, hoje em dia o que faz o destino é a região, é a gastronomia que se associa à dormida. Em suma, os vários setores da economia, da arte e da cultura vão encontrando-se uns aos outros, fazendo um ecossistema turístico. O hotel hoje em si não sobrevive sem um ecossistema.
Novas tendências
O que vai marcar a arquitetura dos hotéis depois da pandemia?
Talvez o setor mais impactado pela pandemia seja o comércio. Os hotéis podem olhar para isto como uma oportunidade: trazer algum comércio de ativação de marca para dentro dos hotéis pode ser um caminho. E, por isso, ao lobby market poderia acrescentar-se lojas de marca. O lobby do hotel é uma área tão cara, que temos que realmente abri-la à cidade. Precisamos de diferentes experiências no lobby.
Por outro lado, desenvolver um hotel sem um belíssimo design de interiores é um risco e um passo quase para o abismo. Hoje é essencial o design de interiores no hotel. Tornou-se complementar à arquitetura e as tendências são muito fortes. Por exemplo, para o Grupo Inspira estamos a fazer dois hotéis, um em Santos e outro na Sé de Lisboa. O Grupo Inspira terá no seu portfólio um três, um quatro e um cinco estrelas. Isso é muito interessante. O que querem vender é uma inspiração, indiferentemente em que hotel está o cliente ou quantas estrelas tem o hotel. É um conceito interessante, transversal num grupo familiar que vai acrescentar um grande valor e com designs diferentes para cada um deles e o fio condutor nestes projetos é o próprio proprietário. A hotelaria vai mexer naturalmente imenso.
E a questão da sustentabilidade? Nota que, nos novos projetos, os hoteleiros já têm a preocupação em criar edifícios energeticamente eficientes?
Talvez sejam os mais atrasados nessa sensibilidade, os escritórios foram os primeiros. Agora chegou à hotelaria. As novas gerações já têm o chip da sustentabilidade. Por isso vão ter muito em conta, quando escolhem o hotel, quais são os ícones de sustentabilidade que o mesmo tem e não passa só pela toalha, vai muito além disso. A sustentabilidade em termos de exploração já existe, mas a nível do edifício ainda estamos longe. Os hotéis têm de olhar para isto porque senão serão penalizados pelas novas gerações. Poderão tornar-se obsoletos. Há equipamentos hoteleiros que vão tornar-se obsoletos no futuro para os jovens que agora têm 12/15 anos. Os hotéis têm que ter muito presente esta questão da sustentabilidade. Trazê-la para dentro do hotel, não só na exploração mas no edifício e na manutenção, caso contrário vão ser penalizados.
Há alguma região/cidade em Portugal onde gostasse de projetar um hotel?
Tenho um projeto para um hotel para Évora que não sei ainda se vai ser concretizado ou não. É um edifício histórico e adorava que esse projeto fosse para a frente. Porque é uma cidade extraordinária, muito bonita, que mantém as suas características ao longo dos anos, mas tem sabido atualizar-se. Quando vamos a Évora sentimos que estamos num museu, mas num museu contemporâneo, uma coisa meio estranha, mas é verdade. É um edifício histórico muito bonito que merece ser reabilitado e porque tem uma ampliação muito discreta e muito silenciosa, que valoriza o património existente.