Os incêndios florestais em Portugal são uma tragédia recorrente, cujas consequências vão muito além da perda de recursos naturais. A devastação de Pedrógão Grande, que chocou o país, não serviu de lição. O problema permanece e agrava-se, refletindo um falhanço coletivo na gestão do território. O cenário de destruição é amplificado pela monocultura do eucalipto, a qual, apesar dos seus benefícios económicos, se não for devidamente planificada, distribuída e gerida, continuará a ser uma das principais causas da rápida propagação dos fogos. A ausência de políticas eficazes e a desertificação das zonas rurais alimentam um ciclo vicioso de abandono e vulnerabilidade, resultando em paisagens devastadas que afetam não só a economia, como o turismo e a identidade cultural e paisagística do país.
Monocultura do fogo
O flagelo dos incêndios em Portugal é um drama que há muito ultrapassou a dimensão de um problema sazonal. Ano após ano, o país assiste impotente à destruição de vastas áreas florestais, num ciclo que parece não ter fim. No centro desta tragédia encontra-se uma árvore que se tornou controversa: o eucalipto.
O eucalipto, introduzido em Portugal há várias décadas, rapidamente se tornou numa cultura predominante devido ao seu rápido crescimento e à crescente procura da indústria de celulose e papel. Contudo, a sua presença maciça nas paisagens nacionais desacompanhada de um efetiva gestão prudencial, é uma das razões que explicam a facilidade com que os incêndios se propagam. O eucalipto é uma espécie altamente inflamável: as suas folhas e casca seca ardem facilmente, e o óleo que produzem contribui para a rápida disseminação das chamas.
A plantação desenfreada de eucaliptos em grandes extensões de terra, muitas vezes sem a devida separação ou diversificação de espécies, resulta numa paisagem de monocultura propícia à catástrofe. Em regiões onde predominam estas árvores, a natureza funciona como um barril de pólvora à espera de uma faísca. E o problema não se limita apenas à sua propagação; após um incêndio, o eucalipto renasce rapidamente, garantindo que, em poucos anos, o ciclo de vulnerabilidade ao fogo recomece.
No entanto, responsabilizar unicamente o eucalipto é ignorar as causas estruturais que permitiram a sua disseminação descontrolada. A escolha do eucalipto como cultivo principal é uma consequência de um conjunto de políticas e escolhas económicas que ignoraram os riscos a longo prazo em favor do lucro imediato.
Falhámos ao nosso mundo rural
Os incêndios florestais são também o resultado do abandono das áreas rurais e do esvaziamento demográfico do interior do país. As aldeias e pequenas comunidades que outrora mantinham vivas as práticas agrícolas e de silvicultura sustentável foram gradualmente desaparecendo. A migração para os centros urbanos em busca de melhores condições de vida e emprego deixou atrás de si um território vulnerável, onde a natureza se expandiu sem controle humano.
Esse despovoamento retirou da equação o conhecimento ancestral e as práticas tradicionais de gestão do território, como a limpeza de matas e a agricultura em mosaico, que criavam barreiras naturais contra os incêndios.
Acrescem as intermináveis heranças e partilhas de terrenos por filhos, primos, sobrinhos e netos, os quais, lá longe na cidade, não fazem sequer ideia de onde fica o que lhes pertence no campo.
Sem a intervenção humana, as florestas cresceram de forma desordenada, acumulando uma enorme quantidade de material combustível.
Portugal falhou na preservação do mundo rural, e as consequências deste erro são hoje evidentes nas paisagens devastadas e nas comunidades cada vez mais esvaziadas do interior. Fracassamos com uma política de litoralização e de benefício dos grandes centros urbanos. Temos hoje um país desequilibrado territorialmente e que continuará sem solução enquanto persistirmos numa visão limitada e centrada em interesses político partidários imediatos. A verdade é que os poucos que ficaram no interior são hoje “eleitoralmente irrelevantes” e por isso muito pouco (e mal) representados.
É fundamental reverter este erro histórico. O sempre badalado e inerte discurso de coesão tem de ser materializar em reais políticas e decisões que promovam um modelo de desenvolvimento mais inclusivo e que reconheça e potencie o valor estratégico das áreas rurais. Revitalizar o mundo rural é urgente, não só para proteger as suas paisagens e tradições, mas também para garantir um futuro sustentável e equilibrado para todo o país.
As comunidades rurais são o coração do turismo em várias regiões de Portugal, enfrentando com esta situação perdas substanciais e muitas vezes irreversíveis. Lembrar que quando uma região é atingida pelo fogo, as plantações, florestas e infraestruturas são destruídas, resultando em prejuízos financeiros imediatos. Este cenário vem disseminando um sentimento de impotência que leva ao abandono das atividades agrícolas e florestais, criando um ciclo vicioso: quanto menor é o cuidado e a gestão das áreas rurais, mais vulneráveis se tornam a futuros incêndios.
Que turismo no meio de paisagens devastadas pelo fogo?
Não é apenas uma contradição, mas também uma ameaça ao potencial de crescimento sustentável que o turismo tem de oferecer.
A imagem de Portugal como um destino turístico está comprometida. Os incêndios constantes transmitem uma mensagem de negligência ambiental, afastando turistas que buscam locais preservados e experiências autênticas. Convém lembrar que competimos com outros destinos e que estamos a comprometer um fator diferencial fundamental.
Somos hoje um país menos atrativo, regiões propensas a incêndios são vistas como locais de risco, desencorajando visitantes. As memórias destes eventos perduram, e criam a perceção de uma insegurança duradouras.
Tenhamos consciência de que a nossa capacidade de continuar a atrair turistas depende em muito da nossa capacidade proteger e preservar a nossa herança e paisagem natural.
Um chamamento à ação
A questão dos incêndios florestais em Portugal vai muito além de um simples problema ambiental. Trata-se de um desafio complexo que afeta profundamente a economia, a sociedade, e até a identidade cultural do nosso país. Ano após ano, este cenário repete-se, deixando cicatrizes permanentes nas nossas paisagens e nas comunidades rurais que delas dependem.
Não sou especialista e não tenho todas as respostas e o conhecimento mais profundo sobre o tema, mas é evidente que existem medidas que, se implementadas com vontade, seriedade e coordenação entre diversos setores da sociedade, poderiam fazer uma grande diferença.
É com esse espírito que identifico algumas possibilidades. O momento exige que adotemos estratégias inovadoras e decisivas, que reconheçam a gravidade da situação e a urgência de agir para proteger o futuro das nossas florestas e do nosso país.
1. Gestão centralizada e profissional da floresta
Uma efetiva integração, centralização e hierarquia na gestão florestal e dos fogos é crucial. O desenho do atual do “Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais”, fragmentado entre várias entidades (mais de 10!), cada uma com os seus procedimentos, hierarquias, agendas, orçamentos e calendários, revela-se manifestamente desarticulado tanto na prevenção quanto no combate a incêndios. Uma entidade nacional única, com a devida autoridade, orçamento, meios e pessoal poderia mais eficazmente implementar e gerir políticas de prevenção e sustentabilidade florestal, de forma uniforme e a longo prazo, e agir em situações de risco elevado e emergências, monitorizando o risco de incêndios e a resposta rápida e concertada dos meios disponíveis para o combate aos fogos.
2. Expropriação de terras abandonadas
Uma solução que me parece bastante lógica é a expropriação de terras florestais e agrícolas que estão abandonadas. Essas áreas, se incorporadas a um banco de terras nacional, poderiam ser cedidas a quem esteja disposto a mantê-las limpas e produtivas. Com tantos terrenos sem uso e sem gestão, talvez seja hora de começar a considerar medidas mais radicais.
3. Reorganização do ordenamento do território
Penso que reorganizar a paisagem rural seria essencial. Criar mosaicos de culturas agrícolas, pastoreio e espécies florestais diversificadas ajudaria a dificultar a propagação do fogo. Além disso, cinturas verdes ao redor de aldeias e infraestruturas críticas poderiam funcionar como barreiras naturais contra os incêndios ou pelo menos mitigadoras da destruição material e humana que estes provocam em aldeias e povoações mais isoladas.
4. Restrições à plantação de espécies inflamáveis não autóctones
Outra medida que, sinceramente, já deveria estar em prática é a proibição da plantação em longas extensões de terreno, e sem quaisquer faixas divisórias, de espécies altamente inflamáveis, como o eucalipto, especialmente em zonas de elevado risco. Permitir, sem limitações ou critérios, a plantação e exploração do eucalipto tem sido nefasto. Pelo contrário, incentivar a plantação de espécies autóctones, menos inflamáveis, seria um passo importante para reduzir o risco de incêndios e proteger a biodiversidade.
5. Reforço do investimento em tecnologia de prevenção
Perante o número cada vez mais reduzido de profissões e pessoal afeto à vigia florestal, investir em tecnologias de prevenção, como drones, satélites e sensores para monitorar a humidade do solo, parece um caminho lógico e eficiente para uma resposta eficiente à prevenção dos incêndios.
6. Campanhas educativas de sensibilização
Promover campanhas educativas é uma maneira simples e eficaz de sensibilizar a população para a importância da prevenção de incêndios e da gestão florestal. Introduzir este tema nas escolas ajudaria a formar gerações mais conscientes sobre a importância do mundo rural.
7. Responsabilização mais rigorosa por incêndios
Em vez de nos focarmos no aumento das penas, entendo mais eficaz reforçar a responsabilização de pessoas e empresas envolvidas em atividades de risco. Multas mais elevadas, a retirada de licenças e até o encerramento de fábricas que tenham contribuído para incêndios por negligência ou falta de cuidado devem ser considerados. Além disso, atividades de maior risco deveriam ser obrigadas a ter seguros mais caros que cubram os danos causados por incêndios de grande escala. Este é um ponto que requer discussão cuidadosa, mas pode trazer melhores resultados.
8. Incentivos fiscais para florestas bem geridas
Os proprietários que mantêm uma gestão florestal sustentável deveriam ser recompensados com incentivos fiscais. Implementar critérios rigorosos de limpeza e prevenção não apenas protegeria as florestas, mas também reconheceria os esforços daqueles que investem no cuidado do território.
9. Desenvolvimento de uma indústria florestal sustentável
Apoiar a criação de uma indústria florestal sustentável baseada na exploração de espécies autóctones e em produtos não madeireiros, como cortiça, resina, cogumelos e plantas medicinais, parece uma solução interessante e potencial.
10. Criação de centrais de biomassa municipais ou intermunicipais
As centrais de biomassa são uma solução sustentável para a gestão de resíduos orgânicos e a produção de energia renovável. A sua criação a nível municipal ou intermunicipal permitiria um aproveitamento mais eficiente dos resíduos florestais e agrícolas, que, se não tratados adequadamente, podem aumentar o risco de incêndios. Estas centrais podem gerar eletricidade e calor, contribuindo para a redução de dependência de combustíveis fósseis e oferecendo uma solução de economia circular, onde os resíduos locais são transformados em energia. A criação dessas infraestruturas também pode gerar emprego local e incentivar uma gestão mais ativa dos recursos florestais, reduzindo o material combustível disponível em áreas florestais, o que, por sua vez, ajudaria na prevenção de incêndios.
11. Exército a combater incêndios
No contexto do combate a incêndios florestais, o uso do exército para apoiar as forças de emergência tem sido uma prática comum em Espanha, onde a Unidad Militar de Emergencias (UME) é frequentemente mobilizada e que muito nos apoiou na última semana. Esta unidade é especializada em várias situações de emergência, incluindo incêndios florestais, e dispõe de equipamentos avançados e treino especializado para atuar rapidamente em grandes áreas afetadas. Uma medida semelhante em Portugal poderia consistir na criação de uma unidade militar de emergência com funções específicas para o combate a incêndios florestais. Esta medida aumentaria a capacidade de resposta do país, especialmente em períodos de maior risco, como o verão, e garantiria uma coordenação eficiente com os serviços civis de proteção civil, bombeiros e outros organismos.
Merecemos todos um país melhor
A solução para os incêndios em Portugal exige uma mudança de mentalidade coletiva, onde a proteção do território e a prevenção se tornem prioridades absolutas. Não se trata apenas de combater o fogo, mas de cuidar de uma terra que, em última instância, é o nosso maior património.
Não poderia deixar de partilhar o meu agradecimento e gratidão a todos os que hoje lutam contra este flagelo. É consternador e comovente assistir anualmente a esta tragédia.
Merecemos todos um país melhor.
*Por Fernando Assis Coelho
É licenciado em Geografia pela Universidade Nova de Lisboa e pós-graduado em Turismo, com formações executivas na Porto Business School, SDA Bocconi, AESE Business School e Universidade de Londres. Estreou-se como assistente de direção no grupo hoteleiro escocês Brudolff, tendo exercido funções como diretor de hotel no grupo Pestana, Royal Óbidos Spa & Golf Resort e Hotel Cidnay. Desempenhou funções com responsabilidade no turismo do grupo Symington e atualmente é Director de Area para Portugal e algumas unidades de Madrid do grupo espanhol Hotelatelier.
Excelente Fernando